O catarinense Nésio Fernandes talvez seja o secretário do governo Casagrande mais conhecido da população. A pandemia, que já dura um ano e 10 meses, fez o secretário estadual da Saúde popular, de tanto aparecer pedindo pelo uso de máscara, distanciamento social e adesão à vacina. Também o tornou alvo de muitos ataques de políticos adversários do governo e de grupos anticiência e antivacina, que lhe renderam até uma ameaça de morte.
Nésio recebeu a coluna De Olho no Poder na última quarta-feira (17) e falou sobre o momento mais tenso da pandemia, analisou o cenário atual com a iminente quarta onda na Europa e o que se pode esperar no Estado. Também falou sobre política e sobre sua formação cristã, que o levou a entrar na área da Saúde para ser missionário. Hoje participa de cultos da “Igreja na rua”, que atende moradores em situação de rua em Vila Velha.
Flamenguista e apaixonado pelo Espírito Santo, já mandou até trazer seu Fuscão vermelho – ano 70, série A – de Tocantins, onde atuava antes de aceitar o convite do governador Casagrande. “A vinda dele (carro) é o selo que devo ficar um bom tempo por aqui. Ele chega em dezembro”.
Coluna De Olho no Poder – Pode-se dizer que hoje a pandemia está sob controle no Estado?
Nésio Fernandes – O atual estágio de vacinação do Espírito Santo já permite afirmar, com segurança, que é muito pouco provável que a gente tenha uma nova explosão, uma nova curva de casos, de internações e óbitos que impliquem numa redução substantiva, grande, das atividades econômicas e sociais. Nós podemos desenhar com segurança que teremos um cenário muito positivo para 2022 e que a gente termina, esse ano, com uma redução bem consolidada das internações e dos óbitos, com patamares inferiores aos que a gente tem hoje.
Pode zerar os óbitos?
Talvez. É possível zerar e ter dias sem óbitos no Estado. Ainda não tivemos nenhum dia, todos os dias temos pelo menos um óbito. São Paulo não teve dias sem óbitos, eles tiveram dias sem registro de óbitos. A notificação de óbito é que não chegou no dia.
Essa possibilidade de uma quarta onda na Europa, com países fazendo lockdown para os não vacinados. Isso preocupa?
Nós temos uma característica imunológica da população que foi altamente exposta ao vírus. Existe uma imunidade dos curados, no entanto a imunidade dos curados jamais deveria ter sido assumida como estratégia de saúde pública porque custaria uma quantidade enorme de óbitos. Diferente da Europa, que estabeleceu medidas muito rígidas e reduziu a exposição da população ao vírus, nós além de termos uma população altamente exposta ao vírus, temos um programa de imunização que é extraordinário. Então a gente conseguiu colocar a vacina em cima de uma população totalmente exposta. Na Europa teve uma baixa adesão da vacinação. A adesão da vacinação no Espírito Santo não tem comparação com quase nenhum país europeu. Aqui 95% da população adulta aderiu à vacinação, tomando a 1ª dose. A Alemanha, por exemplo, não conseguiu ter esse patamar. Nós ultrapassamos os EUA em doses aplicadas. O Brasil teve uma alta exposição com o custo de muitos óbitos e teve também um sucesso na vacinação. Então, a experiência brasileira é diferente da experiência europeia.
E nós tivemos uma decisão importante do Ministério da Saúde que é a dose de reforço para quem tem mais de 18 anos. Internamente já temos estudos que apontam que a eficácia da vacina para casos leves cai muito a partir do quarto e quinto mês. Ela preserva uma eficácia de maior prazo para casos mais graves e óbitos. De modo que, se a gente tivesse uma dose de reforço para a população adulta somente na metade do ano que vem, com muitas pessoas circulando no período de Natal, verão e Carnaval, com prazo muito grande a partir da segunda dose da vacina, poderia criar um ambiente favorável para novas oscilações de casos. Então, como estamos dando a dose de reforço agora, isso ajuda a diminuir o risco de uma nova onda no país.
Caiu a adesão à vacinação no Estado?
A gente tem a sexta melhor posição do Brasil com relação à D2. Em 27 estados, é uma posição importante, não é uma posição que a gente possa dizer que a população capixaba é aderente a teses antivacina, teses negacionistas. As teses bolsonaristas aqui, não distante de Bolsonaro ter sido bem votado, não foram determinantes na macropolítica capixaba. Os governadores capixabas dos últimos 20 anos não foram governadores cuja pauta de costumes, a pauta ultrarreacionária tenham determinado a macropolítica. E isso se reflete na saúde. As teses bolsonaristas ligadas a dúvidas na vacinação, de questionar a ciência, não são hegemônicas no nosso Estado.
O avanço da vacinação perdeu o ritmo por diversas questões, mas não relaciono com movimentos antivacina de forma alguma. Relaciono muito mais a uma redução da percepção do risco da população com a queda das internações e óbitos.
Qual foi o momento mais difícil nesse período de pandemia?
O mais difícil foi a terceira onda, sem dúvida, a partir da última semana de fevereiro. Reunir, dentro do governo, convicções para poder determinar aquela quarentena com as características que nós fizemos exigiram um exercício técnico e político gigantesco. Toda a mobilização que o governador fez com outros poderes, para dentro do próprio governo, com federações, outras frentes. E foi surreal, a quantidade de pacientes que a gente tinha sendo internada e indo a óbito… Teve um dia que tivemos 87 óbitos. Eu não posso comparar esse momento a nenhum outro.
O mais difícil foi convencer os outros a implementar as medidas restritivas?
O governador estava seguro e convencido. A tensão foi porque era incrível você estar numa quarentena com 87 pessoas morrendo por dia e ainda tendo aquele grau de polarização. A ida daquele grupo político na casa da mãe do governador, aquilo foi deprimente. Mas passamos as três ondas sem colapso da rede de saúde, o SUS atendeu a rede privada. Pessoas que podiam pagar, mas não tinham vagas na rede particular. Tivemos o caso de uma pessoa multimilionária que estava internada no Jayme (hospital público referência para Covid), que tinha condição de comprar o Jayme. Tivemos muita gente de classe média e alta que se trataram na rede, e o mesmo leito que cuidou dessas pessoas cuidou dos mais humildes também. A gente caminha com tranquilidade e com a certeza de que fez o que deveria ser feito num contexto sem vacina. Numa pandemia não tendo nem remédio específico nem vacina, você tem que fazer a resistência e a gente fez isso.
Perdeu alguém próximo?
Não perdi nenhum parente, mas perdi pessoas queridas, conhecidas, da infância. Cresci na cidade de São Bonifácio, na Serra Catarinense, com 3.200 habitantes. Lá não teve Covid em quase toda a pandemia e uma festa de formatura, numa pousada, fez a cidade inteira pegar Covid. Morreu um vizinho, um professor meu do ensino fundamental.
Em algum momento você achou que não fosse conseguir, que fosse sucumbir?
Não. Tem momento que minha psoríase (doença autoimune) está atacada, mas tive dedicação integral. Tinha muita segurança das decisões que tomamos. Claro, se tivéssemos o governo federal com políticas econômicas, anticrise, de distanciamento social, coesão da sociedade, teríamos feito muito melhor. E é aquilo: quando se sente fraco, pede ajuda a Deus!
O senhor foi bastante atacado por políticos, como lidou?
Não tive ciência de 90% dos ataques, não ouvi, não vi, não li. Não dediquei atenção, não gastei energia com esses atores políticos. Agora quando eles ultrapassaram o cúmulo do absurdo, eu abri processo judicial. Tem um processo na Vara Criminal que já ganhei na 1ª instância contra um parlamentar do Estado. Decidi não entrar num enfrentamento público com eles porque seria perda de tempo, seria consumir uma energia que eu devia dedicar para garantir atendimento ao povo. Eu me dediquei à minha missão.
Em algum momento foi ameaçado?
Fui ameaçado de morte. O presidente de uma associação mandou um e-mail para o gabinete pedindo para deixar na minha mesa e que a chefe de gabinete garantisse que eu lesse o texto. Nesse e-mail ele dizia que iria me matar caso o filho dele pegasse Covid e morresse por não poder tomar cloroquina, porque eu teria proibido a cloroquina no Espírito Santo. Fiz uma queixa crime contra ele, está tramitando.
Quantos processos já abriu?
Acho que são cinco.
Você disse que sua mãe uma vez assistiu a sessão da Assembleia e ficou brava com os ataques feitos a você…
Ela sofreu e ficou muito ofendida e abalada. Ela tem 68 anos.
Você anunciou um mutirão de 50 mil cirurgias eletivas para esse segundo semestre. Como está o andamento e quais os próximos projetos da Sesa?
Já fizemos 34 mil cirurgias, até o final do ano faremos as 50 mil. É o novo cotidiano. Vamos começar janeiro em ritmo de mutirão, estabelecer uma agenda para ter 100 mil cirurgias em um ano.
O sistema era muito bagunçado, criamos uma nova regulação. Acho que não consegui traduzir a quantidade de projetos que simultaneamente à pandemia a gente executou. Para além do tema leitos, e de cobertura do Samu, saímos da 5ª pior cobertura de Saúde da Família para a 7ª melhor cobertura. Toda a engenharia que construímos aqui, a quantidade de investimentos que fizemos em informação e formação de recursos humanos não têm paralelo em etapa anterior da Sesa. Temos projetos em andamento na modernização da gestão hospitalar. Iniciamos o médico de família em comunidade do hospital, o médico hospitalista. Essa nova especialidade médica, pouco conhecida no Brasil, gerou redução de 53% nas taxas de óbitos, um giro de leito com redução do tempo médio de permanência de 15 para 3,9 dias. Aumentamos todo o desempenho da rede hospitalar. Temos o desafio de avançar no ano que vem.
O senhor ganhou muita visibilidade na gestão da pandemia, será candidato no ano que vem?
Não. Sou um quadro técnico com preparação política. Minha atividade é eminentemente técnica e muito bem posicionada dentro do governo. Meu papel é tentar construir espaços de convergência e apoio a todos que apoiam Casagrande. Eu não serei candidato, mas estarei apoiando todos os candidatos que apoiam o governo e que o governador me orientar a apoiar.
Mas você continua filiado?
Sim. Sou um quadro orgânico do PCdoB.
Numa possibilidade de Casagrande não ser reeleito ou o senhor não ser mais da equipe a partir de 2023, continuará no Estado?
Minha esposa é concursada em Tocantins, tenho uma casa própria em Palmas, vai depender da decisão dela de continuar aqui ou não. Eu não tenho vínculo efetivo com nenhum lugar, sou um catarinense, que foi para Cuba, foi para Tocantins, para o Espírito Santo e eu posso ir para qualquer lugar. O fato é que eu me sinto muito feliz e realizado vivendo no Espírito Santo. Se eu pudesse escolher, hoje viveria aqui com total tranquilidade. No entanto, eu tenho questões familiares e pessoais que ultrapassam minha opinião pessoal.
É verdade que antes de ser médico, você queria ser pastor?
Sim, eu me converti a Cristo com 14 anos, na igreja Renascer em Cristo, me batizei na Igreja Batista, tive uma adolescência totalmente dedicada à igreja, era viciado em leitura, vigília de oração, ia para o monte orar de três a quatro vezes por semana, era totalmente dedicado à vida religiosa. De 16 para 17 anos eu tinha uma biblioteca com 300 livros de teologia. Tive contato com missionários, a Igreja Batista trabalhava a lógica dos “fazedores de tenda” então estimulava que tivesse uma profissão para ir para missões. Eu passei no vestibular de Fisioterapia e queria ser fisioterapeuta e missionário num país africano, tinha fixação com a África.
Na faculdade eu amadureci algumas concepções e minha espiritualidade. Comecei a praticar disciplinas de silêncio e meditação e a viver uma espiritualidade que não era só focada em ler a Bíblia, pregar a palavra e ir para o culto. Então eu passei a participar de movimento estudantil, da vida política da universidade, comecei a ter outras leituras, como Erich Fromm, Sartre, Wilhelm Reich, Karl Marx, para poder compreender a personalidade humana, a sociedade, nossa época histórica e acabei avançando na compreensão de questões que eu tinha dificuldade de entender quando eu era adolescente.
Temas como o processo transexualizador, eu não compreendia. Hoje eu compreendo que a população trans não precisa ser submetida à violência psicossocial para que seja aceita, ela vive uma condição e precisa ser aceita, porque Deus a aceita do jeito que ela é. Outros assuntos, como o aborto legal, eu assumi como uma agenda de saúde pública, de um estado que é laico. Passei a ter um posicionamento mais liberal, do ponto de vista teológico, e então acabei optando por não ser mais pastor missionário, mas um cristão com uma vida dedicada ao Reino de Deus em outras dimensões.
Está feliz com a escolha?
Extremamente. O Senhor é meu pastor e nada me faltará (Salmo 23).