Não é novidade que durante o período de campanha eleitoral, as igrejas – principalmente as evangélicas – sejam alvo do assédio de políticos em busca do voto religioso. É comum ver em quase todos os cultos e missas uma romaria de candidatos apertando a mão dos fiéis e participando de eventos religiosos. Até aí, nada de novo, até porque cientistas políticos e pesquisas apontam que o voto religioso pode ser decisivo nessa eleição.
O que mudou neste ano, segundo especialistas, é uma participação maior e mais incisiva de líderes religiosos em campanhas eleitorais, com o uso do espaço da igreja e do momento de culto para tratar de política partidária e até, em alguns casos, impor seu posicionamento ideológico-partidário aos fiéis, o que tem gerado racha nas congregações e denúncias na Justiça Eleitoral.
Na última semana, durante um culto numa igreja evangélica em São Paulo, um líder religioso chamou todos os candidatos à frente e cedeu o microfone para que eles pudessem dizer o nome, o número de urna e o cargo que estavam disputando. Dezenas de candidatos foram à frente da congregação, entre eles, o candidato ao Senado por São Paulo e ex-ministro Marcos Pontes.
Eis que durante a apresentação dos candidatos, um fiel se levantou e gritou: “Está errado fazer isso aqui. Aqui é a casa do Senhor. Isso aqui não é lugar de política. Vocês estão todos errados. Eu vim aqui prestar minha voz ao culto, não vim fazer isso”.
Em Goiânia, também na semana passada, uma discussão de cunho político dentro de uma igreja evangélica por pouco não acaba em tragédia. Um fiel da Congregação Cristã do Brasil foi baleado por um policial militar, também frequentador da igreja, após discutirem sobre o posicionamento do pastor que pregava, segundo testemunhas, para que os fiéis não votassem em candidatos da esquerda.
Dias antes de ser baleado, Davi Augusto de Souza gravou um vídeo dizendo que não iria aceitar “heresias” dentro da igreja e que a igreja não era local para pregar política e nem voto em candidatos. Disse ainda que tomaria providências se isso ocorresse. A Polícia Civil de Goiás investiga o caso.
Divisão entre irmãos
Os dois casos não são isolados. Recentemente, ganhou repercussão o caso de um pastor da Assembleia de Deus, de São Paulo, que durante um culto disse que eleitores de Lula não merecem tomar a “Santa Ceia do Senhor”. Na tradição cristã, participar da Santa Ceia significa ser parte do Corpo de Cristo, em outras palavras, ser parte da igreja.
No mês passado, também, um relatório assinado pelo reverendo presbiteriano Osni Ferreira e enviado para o Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil sugeria que fosse criada uma comissão na igreja para repudiar “pensamentos de esquerda”.
Também há casos, relatados em paróquias da Igreja Católica principalmente, onde padres, durante a homilia, falam contra o bolsonarismo e o não voto em Bolsonaro. Em 2020, um padre no interior de São Paulo disse que os fiéis que votaram no Presidente deveriam se confessar.
Embora ainda seja um movimento tímido, muitos membros de igrejas têm se incomodado com o uso político dos templos e dos momentos de cerimônias e têm se manifestado nas congregações, em redes sociais e denunciado na Justiça Eleitoral. Segundo o advogado e especialista em Direito Eleitoral Fernando Dilen, tem aumentado as denúncias na Justiça Eleitoral.
O que diz a lei?
Os artigos 24 e 37 da Lei Eleitoral proíbem que a igreja seja usada para fins políticos. A legislação diz que não se pode fazer propaganda eleitoral em bens de uso comum, como a igreja, e também a proíbe de doar dinheiro (ainda que estimável, como serviços, por exemplo) para candidatos e partidos.
Sendo assim, o líder religioso não pode, dentro da igreja, pedir voto, fazer propaganda positiva ou negativa para determinado candidato, promover determinado partido ou concorrente em suas cerimônias, cultos, reuniões ou missas. Mas, embora a lei vede, tais comportamentos continuam ocorrendo.
Um dos motivos seria a dificuldade de fiscalização por parte da Justiça Eleitoral, que depende de ser provocada. Ou seja, é necessário que haja uma denúncia, acompanhada de material probatório (provas), e nem sempre o fiel está disposto a denunciar a própria igreja ou o líder. Muito ainda porque faz parte da doutrina de muitas igrejas o ensino de que o líder espiritual deve ser obedecido e não pode ser contestado, não se pode “tocar no ungido do Senhor”, independente do que ele disser ou fizer, o que muitas vezes torna a congregação refém de abusos.
Embora não tenha virado lei o “abuso religioso” – já debatido na Justiça Eleitoral –, Fernando Dilen afirma que algumas atitudes de líderes religiosos podem ser configuradas como abuso de poder político ou econômico.
“O que é abuso de poder político? É querer utilizar da posição institucional para poder obrigar alguém a votar ou deixar de votar em determinado candidato. É óbvio que eles (líderes) podem expressar sua opinião, mas não em cima do púlpito, dentro da igreja, não utilizando a estrutura da igreja, até porque a igreja é um local público e a legislação eleitoral proíbe propaganda eleitoral em local comum”, explicou.
Uso das redes sociais
Dilen afirmou que há casos em que a Justiça Eleitoral não considera só o local físico (templo), mas também as redes sociais do líder ou da instituição como extensão da igreja. Ou seja, há jurisprudência, segundo ele, para que seja considerado irregular um líder religioso que usa a rede social oficial da igreja ou mesmo a dele para fazer campanha.
“Pode-se ter o mesmo entendimento que pessoas com mandato. Se a rede social do líder é utilizada para a propagação institucional da igreja, se para eu ter acesso a um determinado culto eu tenho que ir no perfil daquele líder e ele utiliza a mesma rede para promover um candidato, vamos entrar naquela sombra que já permite questionamento judicial acerca do assunto. Por exemplo, se o Instagram dele é utilizado para transmitir eventos da igreja, a rede pode ser considerada uma extensão da igreja, sendo assim, sujeita às restrições da legislação eleitoral. Vai da interpretação do juiz”, afirmou.
O advogado também citou que poderia configurar abuso se o pedido de voto não acontecer na igreja, mas em espaços alugados para realização de atos oficiais da igreja.
Condenar ao inferno
Algo que tem sido bastante debatido também no campo jurídico nesta eleição é a tentativa de impor “grave temor reverencial” aos membros da igreja.
“Grave temor reverencial é quando o líder coloca medo nos fiéis, quando diz que ele vai para o céu ou para o inferno se votar em determinado candidato. Isso está passível de reprimenda judicial porque pode ser encarado, na legislação, como abuso de poder político”, afirmou.
No campo defensivo, muitos líderes religiosos afirmam que não poder falar de política nos púlpitos seria censura. Que faz parte da tradição cristã também pregar sobre cidadania e da atuação do cristão no mundo. O advogado explicou que há uma diferença entre defender pautas da igreja e “contextualizar” o sermão religioso para promover ou prejudicar determinado candidato e que a Justiça Eleitoral tem feito essa diferenciação.
“A igreja defender suas pautas, como por exemplo, dizer que é contra o aborto, não há problema. A questão está em como isso é feito, quando o líder sai da Bíblia e a pretexto de querer contextualizar ele identifica candidato A, B, ou C. Esse é o limite imposto pela legislação eleitoral, quando a contextualização passa a identificar pessoas. Se ficar claro que aquela contextualização serviu para ajudar ou prejudicar o candidato A, B, ou C, já fica passível de sofrer uma reprimenda judicial”.
Dízimos e ofertas para a campanha?
A legislação eleitoral também proíbe que igrejas façam doação, em dinheiro ou serviços, para candidatos ou partidos, ainda que de forma indireta. Fernando Dilen afirmou que a Justiça Eleitoral já analisa casos de tentativas de burlar essa regra, como, por exemplo, quando a igreja doa ou faz um pagamento para uma pessoa física e essa pessoa faz uma doação para um candidato, o que pode ser considerada uma doação irregular indireta.
A igreja também não pode promover eventos, arrecadar doações, “emprestar” sua estrutura para candidatos ou partidos, sob pena também de descumprir a legislação eleitoral.
As denúncias de irregularidades podem ser feitas por meio do aplicativo Pardal, que foi desenvolvido no Estado e hoje está disponível em todo o país por meio do TSE. O aplicativo está apto a receber as seguintes denúncias de compra de votos, uso da máquina pública, crimes eleitorais e propagandas irregulares. Já a apuração de todas as denúncias compete ao Ministério Público Eleitoral, segundo o site do TSE. Em uma semana de funcionamento, o aplicativo recebeu mais de 1.300 denúncias de irregularidades na campanha.