O discurso da primeira-dama do país, Michelle Bolsonaro, num comício “Mulheres com Bolsonaro” no Estado na sexta-feira (21), durou pouco mais de 10 minutos, mas foi o suficiente para mostrar, na prática, uma das principais armas políticas da campanha de Bolsonaro nesta eleição: o discurso religioso pautado no medo, que encontra eco principalmente entre evangélicos – eleitorado que, majoritariamente, está com Bolsonaro.
O discurso, no geral, pinta um cenário apocalíptico, sem nenhuma base na realidade – nem no tempo presente e nem quando se olha o passado –, com uma interpretação enviesada e, conveniente, da Bíblia. E, dentro da campanha de Bolsonaro, coube a Michelle esse papel.
Evangélica, ela tem sido a interlocutora com esse eleitorado, principalmente os da ala do neopentecostalismo – movimento que surgiu na década de 1970 e é o grupo que puxa o crescimento dos evangélicos na sociedade e na política.
O discurso de Michelle na campanha não é novidade para os religiosos e se baseia em alguns pontos: na existência de uma guerra espiritual entre o bem e o mal, na Teoria da Prosperidade – que prega que os “filhos de Deus” nasceram para ser prósperos –, na Teoria do Domínio – que prega que os cristãos devem ocupar e governar postos de influência da sociedade, principalmente na política –, e no chamado para a missão evangelizadora e multiplicadora. Esses elementos estiveram presentes na visita-relâmpago da primeira-dama.
Medo do comunismo e do fechamento das igrejas
“Esse governo tem lutado pela família, pela pátria, liberdade de expressão e pela nossa liberdade religiosa que está sendo sim comprometida pelo comunismo. Temos visto o que está acontecendo e está muito fácil escolher um lado”, disse Michelle, logo no início da sua fala.
O medo de uma suposta implantação do comunismo no país – o Brasil nunca foi comunista – serviu de desculpa para a destituição do presidente João Goulart – em 1964, quando foi instaurada no Brasil a ditadura militar. Depois da redemocratização, o “fantasma do comunismo” sempre apareceu nas eleições, mas nunca foi o principal tema debatido e nem explorado com viés religioso, como ocorre nestas eleições.
A campanha de Bolsonaro tem vinculado a possibilidade de vitória do Lula à implantação do comunismo com uma consequente perseguição aos religiosos e fechamento de igrejas. Ainda que Lula já tenha sido presidente por dois mandatos e não se tenha notícias de perseguição a cristãos em sua gestão, mesmo assim a narrativa está presente em muitos púlpitos e sermões.
A politização nas igrejas tomou tamanha proporção que há sim denúncias de perseguição religiosa, mas por parte daqueles que não se alinham ao bolsonarismo ou que simplesmente rejeitam a mistura entre política e religião. A BBC fez um documentário com relatos de membros de igrejas que sofreram retaliação, coação ou foram expulsos da congregação – um local que deveria ser plural, de comunhão e de fraternidade – por esses motivos.
Há também cenas, que viralizaram nas redes sociais, de interrupção de missas, por bolsonaristas, e vaias a padres e bispos. Um dos episódios ocorreu no dia da padroeira do país, último dia 12, em Aparecida do Norte.
Medo do “mal” vencer
“Só não vê quem não quer ver, só não enxerga quem está cego espiritualmente, e esse é o nosso propósito como cristãos, de nos reunirmos, orarmos, interceder, conversar, orientar quem não está entendendo a guerra espiritual que nós estamos passando no Brasil (…) Peço que não olhem para o candidato (Bolsonaro), peço que olhem para as pautas que ele defende, pela ideologia do bem contra o mal. Para que possamos dissipar esse ‘partido das trevas’ (PT) de uma vez da nossa nação”.
Neste outro trecho do discurso, a primeira-dama apelou para a narrativa da guerra espiritual, da luta do bem contra o mal, de Deus contra o diabo, de anjos contra demônios. Essa narrativa não é nova e sempre fez parte de sermões de muitos líderes religiosos.
É a visão de que há um mundo espiritual, invisível, em constante batalha e que esse mundo espiritual move o mundo físico e vice-versa. Assim, os seres humanos poderiam vencer a batalha por meio de orações e ações.
Essa linha teológica, baseada em textos do Antigo Testamento e também do Novo Testamento – na carta do apóstolo Paulo aos efésios, ele diz: “Pois a nossa luta não é contra seres humanos, mas contra os poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais” –, é a seguida por Michelle.
A liberdade de crença no país permite que cada religião faça sua própria interpretação de seus livros sagrados, até porque não há uma religião oficial, o Brasil é um estado laico. O problema é quando essa visão de mundo sai do campo eclesiástico e se impõe numa disputa eleitoral, quando a “guerra” não se resume às orações e ao campo espiritual, mas passa a ser física, e os adversários políticos passam a ser “demônios” que precisam ser aniquilados.
“Ela (Michelle) propõe uma leitura religiosa, mística e bem perversa porque demoniza o outro e chega a dizer que quem não entendeu isso é cego espiritual. E quem é o cego espiritual? É alguém que está sendo ludibriado pela mentira, por Satanás. É um discurso extremamento violento, perigoso, que divide o mundo em duas forças, saindo da política. Ela transforma todos os outros que não são bolsonaristas em gente cega ou das trevas, isso é muito complicado e pode promover a violência porque entra no nível do terror religioso, da demonização e da destruição do outro”, disse o pastor, escritor e cientista da religião Kenner Terra, ao analisar o discurso da primeira-dama.
A igreja diz amém?
Tanto para Kenner, quanto para o sociólogo João Gualberto, o discurso de Michelle encontra ressonância não somente no meio evangélico, mas também naqueles que são “sensíveis” aos assuntos religiosos, e é algo difícil de desarticular. “É algo que está enraizado no imaginário do evangélico há décadas, essa questão da batalha espiritual. É da ordem do impossível desarticular isso, porque nada do que ela disse é novo”, disse Gualberto.
Embora seja uma interpretação religiosa que encontra divergências até no meio cristão, a entrada desse elemento na disputa eleitoral pode fazer diferença na eleição. “Isso tem a ver com uma formação teológica evangélica, que vê o mundo nessa batalha cósmica. Esse discurso pode sim convencer parte dos indecisos”, afirmou Kenner, avaliando ainda que ela conclamou as mulheres presentes no evento a buscarem votos, a se multiplicarem – discurso semelhante ao da evangelização, de fazer discípulos e de multiplicar os convertidos.
A eleição de Damares é um exemplo de que o discurso do medo religioso – ou como alguns juristas já tem classificado, “grave temor reverencial” – funciona. É a mesma história do “bicho-papão”, que não existe, mas é muito eficaz para se colocar a criança para dormir, como citou o filósofo Júlio Pompeu em entrevista à rádio Jovem Pan News Vitória.
A questão é que depois do “sono”, ou do voto, os problemas reais do Brasil – a fome para milhões de brasileiros, o desemprego, a defasagem na educação, o déficit na vacinação, a violência e a criminalidade –, que não estão sendo debatidos com seriedade nesta campanha, vão continuar atingindo famílias crentes e não crentes. O discurso religioso, pautado no medo, pode até capturar o debate e distrair os eleitores neste momento, mas a realidade se impõe. E ela não terá compaixão ao cobrar sua fatura.
LEIA MAIS: