O ataque a duas escolas em Aracruz, no Norte do Estado, que deixou um rastro de quatro mortos – sendo três professoras e uma estudante – e de cinco feridos em estado grave, até o momento, trouxe à luz debates antigos e outros novos, sobre políticas públicas, que devem entrar na pauta de discussões do Congresso e da Assembleia Legislativa nos próximos dias.
Na última sexta-feira (25), o Espírito Santo foi do ápice da alegria – pelo desempenho do capixaba Richarlison na Copa do Mundo – ao desespero, em menos de 24 horas, com o ataque de um adolescente de 16 anos, filho de um policial militar, a duas escolas (uma estadual e outra particular) de Aracruz. Ex-aluno de uma das unidades, o adolescente usou símbolos nazistas, o carro e as armas do pai – um revólver 38 e uma pistola Ponto 40 – para cometer os crimes.
Ele foi apreendido no mesmo dia e confessou o crime, afirmando ter planejado há dois anos. O terror e a comoção tomaram conta do Estado, além de muitas perguntas ainda sem respostas: ele agiu sozinho? Quem eram os alvos? O que motivou o ataque? Os pais do assassino têm responsabilidade na tragédia?
O episódio também trouxe à arena do debate questionamentos sobre o que o Estado pode fazer, como política pública, para evitar que cenas como as de Aracruz se repitam. E de que forma a sociedade, como um todo, pode contribuir.
1 – Redução da maioridade penal
No mesmo momento em que se tornou pública a informação que o atirador tinha 16 anos, recomeçou o debate sobre a mudança na lei e a redução da maioridade penal. Por ser menor de idade, o atirador está submetido ao Estatuto da Criança e do Adolescente – e não ao Código Penal –, que prevê, como pena máxima, a internação por até três anos por atos infracionais.
Mesmo que a Justiça opte pela internação por três anos não é garantia que ele ficará todo o período internado. A lei prevê que ele passe por avaliações a cada seis meses, conforme informou o advogado criminalista Flávio Fabiano.
“Esse tempo máximo de internação está definido no artigo 121 do Estatuto da Criança e do Adolescente e ainda que ele complete 18 anos, continua tendo o tratamento de menor de idade. Mas também não significa que vai ficar internado três anos, a cada seis meses ele vai passar por uma avaliação multidisciplinar e essa equipe que irá dizer se cessou ou não a periculosidade e se deve ou não continuar internado, até o limite de três anos, ou se vai para uma liberdade assistida”, informou Fabiano.
O adolescente foi preso e autuado em flagrante por ato infracional análogo aos crimes de 10 tentativas de homicídio qualificado por motivo fútil, que gerou perigo comum e com impossibilidade de defesa da vítima, e três homicídios qualificados por motivo fútil, que gerou perigo comum e com impossibilidade de defesa da vítima.
Se fosse dois anos mais velho, ele poderia ser condenado por homicídio qualificado, com pena que vai de 12 a 30 anos de prisão para cada crime, sendo que o Código Penal estabelece como tempo máximo de prisão de um criminoso o período de 40 anos, ou seja, 13 vezes mais.
É justamente essa discrepância na punição, principalmente para crimes bárbaros e hediondos, que acaba gerando sensação de injustiça e impunidade e ainda alimenta os defensores da redução da maioridade penal.
No Congresso, tramita desde 1993 uma PEC que reduz a maioridade penal, para crimes hediondos, de 18 para 16 anos. A PEC foi aprovada na Câmara Federal em 2015 e está parada, desde então, no Senado. Mas há uma chance dela sair da gaveta, segundo o deputado federal Neucimar Fraga (PP).
“Vamos ter uma semana voltada para votar projetos da segurança agora em dezembro e vamos tentar emplacar algo nesse sentido”, disse Neucimar, que defende a redução da maioridade para 14 anos, em casos de crimes hediondos (assassinatos, estupros, sequestros, entre outros), e para 16 anos para os crimes de menor potencial contra a vida.
O deputado federal Da Vitória (PP) disse que a aprovação é urgente. “Caso seja necessário, vou apresentar uma outra PEC, pois é preciso que seja decidido isso. O Brasil não aceita mais impunidade”, disse.
O episódio de Aracruz, juntamente com outros – como a menina de 11 anos que planejou e assassinou a própria mãe no mês passado, em Vila Velha – devem ser usados como argumentos para que a proposta avance.
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2 – Segurança nas escolas
Embora o Brasil não tenha a mesma tradição dos Estados Unidos, onde ataques em colégios são frequentes, os episódios de Aracruz e outros que já ocorreram no País – incluindo uma tentativa de ataque em Vitória – acendem um alerta sobre a segurança nas escolas. Como um atirador consegue invadir duas escolas sem ser parado por ninguém?
Em coletiva de imprensa no dia dos ataques, o governador Renato Casagrande disse que a escola estadual Primo Bitti – a primeira invadida pelo adolescente, onde ele era ex-aluno – tinha “estrutura regular de segurança” e contava com portão eletrônico e vigilante. Mesmo assim, o adolescente conseguiu, numa ação que durou menos de dois minutos, estourar o cadeado do portão dos fundos da escola e acessar a sala dos professores, onde fez a maior parte de suas vítimas.
Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria Estadual da Educação (Sedu), o vigilante estava presente e na portaria da entrada principal. Ele chegou a ouvir o barulho do ataque, mas quando chegou ao local do tiroteio o assassino já tinha fugido. Ainda que chegasse a tempo, talvez pouco pudesse fazer para impedir a tragédia, uma vez que trata-se de vigilante patrimonial, ou seja, atua sem arma de fogo – o adolescente portava uma pistola Ponto 40 e um revólver 38.
Há uma certa resistência, de parte da comunidade escolar, em trazer segurança armada para dentro de uma unidade de ensino, com crianças. No apoio à segurança, o Estado conta com a Patrulha Escolar, numa parceria entre a PM e a Sedu, mas o foco dos policiais treinados para atuar nas escolas é principalmente na prevenção, com palestras e projetos para a promoção de uma cultura da paz.
Há resistência também com relação a transformar a escola numa unidade totalmente isolada e fechada para a comunidade, com trancas e cadeados. Isso iria contra toda uma filosofia de pertencimento, troca de saberes e desenvolvimento comunitário, em que a unidade escolar mantém as portas abertas para a comunidade.
Porém, diante de tal cenário, pais e responsáveis já começam a cobrar, em redes sociais e grupos de conversas, por mais segurança, ainda que isso resulte em mais limitações para os estudantes e profissionais da Educação. Há um debate sobre a implantação do “botão do pânico” nas unidades de ensino. Na manhã desta segunda-feira (28), o governo do Estado criou uma “Sala de Situação” para o enfrentamento aos atos de violência ocorridos em Aracruz.
3 – Atenção à saúde mental
A família do autor dos ataques disse que o adolescente fazia tratamento psiquiátrico, embora essa condição não conste na ficha dele de estudante em sua ex-escola. Fato é que há um aumento significativo de transtornos psíquicos na população em geral – a pandemia contribuiu significativamente para isso – e ainda não há uma resposta à altura em políticas públicas para atender à demanda.
Segundo a Comissão Nacional de Enfermagem em Saúde Mental (Conasem/Cofen), o nível de estresse e de sofrimento psíquico dos brasileiros atingiu números alarmantes após a crise sanitária. Mas o adoecimento de profissionais de educação é antigo e tem sido denunciado já há bastante tempo pelo deputado estadual e professor Sergio Majeski (PSDB).
Após os ataques em Aracruz, Majeski trouxe à tona um vídeo com o discurso que fez na Assembleia após a tentativa de ataque numa escola em Jardim da Penha. Em agosto, um ex-aluno da escola Eber Louzada Zippinotti invadiu a escola com arco e flecha, facas e bombas de fabricação caseira. Ele foi detido antes de concluir o ataque.
“Falamos da importância do aumento da segurança nas escolas e o quanto é importante pensarmos em equipes multidisciplinares para apoiar as escolas. Para além de se notar um volume cada vez maior de alunos com síndromes, depressão, ansiedade, síndrome do pânico e coisas desse tipo, a saúde mental dos professores também não anda boa”, disse Majeski.
O deputado relatou, na ocasião, que tem se tornado comum ameaças e agressões verbais de alunos contra professores. “Então, você tem um número cada vez maior de professores também com síndrome do pânico, com depressão, com ansiedade, adoecendo em função dessa problemática toda que envolve as escolas e sem uma política pública adequada para apoiar as escolas nesses casos mais graves”, disse Majeski.
Durante a campanha eleitoral, o governador reeleito Renato Casagrande disse que as escolas já contam com a atuação de profissionais da área, como assistentes sociais e psicólogos. Em 2019 foi criado o programa “Apoie” – Ação Psicossocial e Orientação Interativa Escolar – que implantou equipes multidisciplinares para atender as 11 superintendências regionais de Educação. Majeski, porém, diz que não é o suficiente.
“É uma equipe, com um assistente social e um psicólogo para cada superintendência. O que é muito pouco. A Superintendência de Carapina, por exemplo, atende Vitória, Serra, Fundão. Só a Serra tem mais de 30 escolas estaduais, sendo que cada escola tem mais de mil alunos. Não tem como atender no nível dos problemas que as escolas estão tendo”, disse Majeski.
Ter um psicólogo em cada escola ou mais psicólogos por superintendências aumentariam o gasto ou investimento na educação. Mas esse ano, por exemplo, o governo do Estado anunciou um abono aos profissionais da área no valor de R$ 7.200 (para cada servidor). Resultado de sobras do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), que é o recurso destinado para financiar a educação básica.
Servidores de outras áreas, que não contam com esse bônus, vão receber R$ 1.500 de abono. Uma das possibilidades, que deve ser levada para o debate, é do recurso do Fundeb ser usado para custear um programa de saúde mental nas unidades de ensino.
4 – Livre acesso a armas
Chamou a atenção, no episódio de Aracruz, o acesso e a habilidade de manuseio que o adolescente, filho de um policial militar, apresentou utilizando as armas do pai: um revólver 38, particular do policial, e uma pistola Ponto 40, da PM.
No decreto 9.685, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro em 2019, que flexibilizou as regras para a posse de arma, há citação explícita para que o dono da arma apresente declaração de que a residência, se habitada por crianças, adolescentes ou pessoas com deficiência mental, possua cofre ou lugar seguro, com tranca, para armazenar a arma.
Ou seja, as duas armas do policial deveriam estar guardadas num cofre ou num lugar com tranca que não permitisse o acesso do adolescente, sob pena do pai incorrer no crime de omissão de cautela (artigo 13 da Lei 10.826/2003), que prevê até dois anos de prisão.
A Polícia Civil investiga se o pai ensinou o adolescente a atirar – o que o policial nega – e se o atirador tinha acesso livremente às armas. Mas além desses pontos, a dinâmica do atentado chamou a atenção para uma discussão mais aprofundada sobre a política pública implantada pelo governo federal que permitiu uma maior circulação de armas de fogo entre os civis.
A facilidade em adquirir uma arma de fogo e a falta de uma fiscalização à altura tem feito com que muitas armas compradas legalmente, principalmente por CACs (colecionadores, atiradores e caçadores), sejam usadas para cometer crimes. Muitas dessas armas são extraviadas e vão parar na mão do crime organizado, por exemplo.
O ex-governador do Maranhão Flávio Dino, que faz parte da equipe de transição do presidente eleito, disse que Lula deve fazer um “revogaço” nos decretos de Bolsonaro sobre armas e munições. Quem apoia, deve levar para o debate o episódio de Aracruz, que recebeu atenção de Lula numa manifestação de solidariedade ao Estado.
Casagrande já disse também, em outras ocasiões, que mais armas em circulação correspondem a mais violência e mais crimes. O governador tem batido na tecla de se construir uma cultura de paz e de não violência e isso tem levantado outro ponto de debate.
5 – Os discursos de ódio
Não há como dissociar discursos de ódio de atos de violência. Ainda que quem discurse não pratique a violência em si, a mensagem acaba sendo um combustível para que outros a cometam.
Por isso o episódio de Aracruz também trouxe à tona o debate sobre o motivo de duas escolas serem alvos dos ataques e o quanto que discursos de ódio, que miram unidades e profissionais da Educação, têm responsabilidade nisso.
Principalmente de 2018 pra cá, os ataques a professores ganharam força e passaram a ser endossados por agentes públicos e parlamentares. Muitos usam o Parlamento para expor e incitar seguidores mais radicais contra os profissionais, acusando-os de doutrinação ideológica e política e de sexualizar crianças.
A capital já foi cenário diversas vezes de tais ataques. Só para citar um exemplo, a professora de inglês Rafaella Machado foi atacada em seu local de trabalho – uma escola estadual em Jardim Camburi – por um vereador de Vitória que prometeu “acuá-la” após ela passar uma atividade em sala de aula para adolescentes com tema LGBTQIA+, em junho do ano passado. A Justiça o condenou a não citá-la em redes sociais, uma vez que ela recebeu ameaças após as falas do vereador, e ainda a pagar uma indenização por danos morais à profissional.
Outros professores e escolas foram alvos do mesmo parlamentar, que incentiva pais a “denunciarem” os profissionais, criando um ambiente de hostilidade, insegurança e agressividade na comunidade escolar.
As secretarias de Educação, tanto de prefeituras como do governo do Estado, contam com órgãos específicos para receber denúncias contra eventuais excessos de professores em salas de aula. Quando é provado que um professor foi contra as diretrizes da educação, ele é alvo de um processo disciplinar que pode resultar em sua demissão.
No ano passado, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados rejeitou projeto de lei que definia crimes de ódio e de intolerância e punia a discriminação baseada em classe e origem social, orientação sexual, identidade de gênero, idade, religião, situação de rua, deficiência, condição de migrante, refugiado ou pessoas deslocadas de sua região por catástrofes e conflitos. A proposta é da deputada Maria do Rosário (PT-RS).
O relator no colegiado, deputado Delegado Éder Mauro (PSD-PA) argumentou que não há uma definição precisa e de aplicação universal do que seja crime de ódio e de intolerância, o que deixaria margem para interpretações subjetivas, segundo a Agência Câmara de Notícias.
6 – Ascensão do neonazismo
O adolescente ter usado, nos ataques, insígnias nazistas também será alvo de investigação da Polícia Civil e levanta outra questão: o quanto que o movimento neonazista está presente na sociedade e influenciando jovens brasileiros.
Em sua tese de doutorado “Observando o ódio”, concluída em 2018 após 15 anos de pesquisa, a antropóloga da Unicamp Adriana Abreu Dias fez um raio-X sobre o fenômeno, principalmente como ele se espalha pelas redes sociais, e concluiu, à época, que o Brasil tinha 334 células nazistas em atividade – a maioria concentrada nas regiões Sul e Sudeste do País. De 2018 pra cá, o número vem aumentando.
“Há uma postagem antissemita no Twitter a cada quatro segundos; uma postagem em português contra negros, pessoas com deficiência e LGBTs a cada 8 segundos”, disse a pesquisadora, à época.
No último dia 15, a Polícia Civil de Santa Catarina acabou com um encontro anual de neonazistas e prendeu oito pessoas em São Pedro de Alcântara, região metropolitana de Florianópolis. No local foram encontrados livros, imagens, símbolos de apologia ao nazismo e a Hitler. No mês anterior, uma outra operação no mesmo estado já tinha prendido outro grupo também com material de cunho nazista.
Os grupos se encontram para fazer leituras sobre o nazismo mas também para planejar ações violentas, segundo os estudos da antropóloga. E esse planejamento acontece, principalmente, da deep web – o submundo da internet –, o que aumenta o desafio das forças policiais, pela dificuldade de investigar.
A apologia ao nazismo é crime no Brasil. Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo pode ser punido com pena de até 5 anos de prisão.
Há, porém, outros projetos tramitando no Senado para endurecer a pena e expandir sua aplicação para saudações nazistas e negação e/ou justificação do Holocausto. As propostas devem ganhar corpo no Congresso após os ataques em solo capixaba.
7 – Envolvimento de todos
Embora caiba à classe política propor mudanças na lei e às forças de segurança coibirem tais atos terroristas, o combate à cultura do ódio e da violência é de toda a sociedade.
O que os estudantes podem fazer ao notarem um comportamento estranho de um colega de turma? No que os pais e familiares precisam prestar atenção? Como as igrejas podem construir uma cultura de paz na sociedade? Como os artistas, os atletas, os influenciadores digitais, os formadores de opinião podem contribuir para evitar que tais tragédias se repitam? O que um cidadão comum pode fazer?
Muitas dessas reflexões ainda não têm respostas, mas somente com o envolvimento de todos é que o País terá força suficiente para lutar, seja na busca por mudar a legislação, criar novas políticas públicas ou ainda influenciar na mudança de comportamento da sociedade.
O clamor do povo capixaba é que a tragédia de Aracruz não seja mais uma na estatística a ser esquecida com o passar dos dias. Respostas urgentes são necessárias. Para evitar que outros ataques aconteçam e para fazer justiça à memória das professoras Cybele, Maria da Penha e Flávia e da jovem estudante Selena, covardemente assassinadas.