O projeto Escola sem Partido está de volta à Câmara de Vitória. O presidente da Casa, Leandro Piquet (Republicanos), já marcou data e hora para debater as duas matérias sobre o tema que tramitam no Legislativo: uma do vereador Davi Esmael (PSD), protocolada em 2017, e outra recente, protocolada em dezembro passado pelo novato Leonardo Monjardim (Patriota).
A princípio, a votação tinha sido marcada para o dia 1º de março, uma quarta-feira. Mas, atendendo a pedidos dos vereadores, que pediram que a matéria fosse debatida numa segunda-feira, o presidente transferiu para o dia 13 de março, a partir das 9h30.
Os dois projetos sobre o tema são semelhantes. A diferença é que a proposta de Davi pede aplicação da lei às escolas públicas municipais e o projeto de Monjardim estende para as escolas particulares da capital. Por ser mais antigo, o projeto de Davi deve ser votado primeiro e o de Monjardim, apensado ao dele.
Polêmico, o projeto é visto por quem o defende como a única solução para acabar com uma suposta doutrinação de alunos nas salas de aula. Já a comunidade escolar vê o projeto como uma “mordaça” aos professores.
Ele ainda violaria a competência da União, a quem cabe legislar sobre a educação. Ainda assim, o projeto tem sido protocolado em massa em diversas casas legislativas, municipais e estaduais, do País. Na Câmara de Vitória mesmo, ele já foi debatido outras vezes.
Histórico
O projeto de Davi, protocolado em 2017, chegou a ter a tramitação suspensa pela Justiça em 2018, que deu uma liminar favorável a uma ação movida pelo então vereador e professor Roberto Martins. Em 2020, ao analisar o mérito, a Justiça derrubou a liminar e liberou a tramitação.
Desde então, o projeto já passou por diversas comissões na Casa, tendo sido aprovado, e estaria pronto para ir à votação em plenário.
Há dois anos, em fevereiro de 2021, a Câmara de Vitória aprovou projeto semelhante, do então vereador Gilvan da Federal (PL), denominado “Infância sem Pornografia”. O projeto proibia que crianças e adolescentes tivessem acesso a conteúdos considerados obscenos – sem especificar o que seria obscenidade e quem julgaria o conteúdo.
Também só liberaria o ensino sobre o corpo humano e o sistema reprodutivo para “idades adequadas”, sem também citar qual seria essa idade. Na justificativa, Gilvan disse que servidores estariam desrespeitando os direitos das crianças e as induzindo à erotização precoce. Porém, não apresentou nenhuma prova para basear a denúncia. Como punição, o projeto estabelecia uma pena de 5% do salário mínimo ao servidor público.
O projeto foi vetado pela Prefeitura de Vitória, que o considerou inconstitucional. Além de invadir a competência da União para tratar da educação, também criava diversas atribuições para as secretarias municipais.
Já o projeto de Monjardim ainda não passou pelas comissões temáticas da Câmara. Uma vez que esteja apensado ao projeto de Davi, os pareceres técnicos dados a um valeria para o outro, segundo o parágrafo 1º do artigo 203 do Regimento Interno da Casa.
O que determina
Entre outras coisas, os dois projetos que tramitam na Casa determinam uma “educação neutra” e obriga as escolas a colocarem cartazes com as proibições previstas no projeto.
Caso o projeto seja aprovado, as seguintes normas terão de ser fixadas nas escolas: “O professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias; o professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas; o professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula, nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas”.
O projeto também institui a criação de um canal para receber denúncias – a serem encaminhadas para o Ministério Público – e punições para os educadores que desobedecerem as normas. Essa é a essência de todos os projetos que abordam esse tema.
Porém, há diversas implicações que tornam o projeto inconstitucional e impossível de ser aplicado, a não ser que a censura volte para as salas de aula. A coluna lista algumas delas:
Jogar para a plateia
Nem vereadores e nem deputados estaduais têm competência para ditar o que será ensinado nas salas de aula. Cabe à União estabelecer as diretrizes e bases da educação em todo o território nacional. Há uma legislação – Lei 9.394/1996 – que estabelece as regras e rege o ensino no País.
Uma vez que é a União que trata do tema, o debate, sugestões de mudanças, apresentações de projetos devem ocorrer em âmbito federal, que é a “instância” apropriada para isso.
Em outras palavras, todo projeto municipal ou estadual que proponha mudar ou emendar o que está estabelecido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação é inconstitucional, por não ter competência (poder) para mudar uma lei federal. Esse é o entendimento jurídico que embasa a maior parte das decisões judiciais contra o Escola sem Partido.
Ainda assim, pipocam nas câmaras municipais e assembleias legislativas projetos com esse tema. E a pergunta que não quer calar é: Por que, mesmo sabendo que as matérias são inconstitucionais, vereadores e deputados estaduais continuam protocolando o projeto?
Uma das principais razões é pela visibilidade alcançada com a polêmica. Projetos polêmicos, com forte base ideológica, costumam dar visibilidade aos seus autores. Servem de palanque para angariar capital político e engajam muito mais nas redes sociais. Para muitos, não importa se a matéria é ilegal e não vai dar em nada, o importante é o fruto que virá do debate colocado. É o famoso “jogar pra plateia”.
Mas, se por um lado, esses projetos rendem engajamento e votos para quem propõe, por outro, acabam gastando tempo, energia e o dinheiro do contribuinte em algo que não vai dar em nada. Enquanto isso, os problemas reais da educação e que pedem uma atuação mais incisiva dos parlamentares ficam de lado.
A implicação com relação ao Escola sem Partido não é só sobre a competência. Outras questões relacionadas ao mérito também se impõem.
Existe educação “neutra”?
Os defensores do Escola sem Partido partem do princípio de que professores devem ser “neutros” na hora de ensinar. Mas existe uma educação neutra? É possível a qualquer pessoa se despir de suas convicções, formação, visão de mundo no momento de se comunicar?
A imposição de uma suposta neutralidade no ensino também foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2020 ao analisar a lei alagoana “Escola Livre”, semelhante ao Escola sem Partido.
Em sua justificativa, o ministro do STF Luís Roberto Barroso, relator do processo, disse que “a ideia de neutralidade política e ideológica da lei estadual é antagônica à de proteção ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e à promoção da tolerância, tal como previstas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação”.
O ministro também disse que o contato com diferentes visões de mundo colabora para o desenvolvimento da visão crítica dos estudantes.
“Quanto maior é o contato do aluno com visões de mundo diferentes, mais amplo tende a ser o universo de ideias a partir do qual pode desenvolver uma visão crítica, e mais confortável tende a ser o trânsito em ambientes diferentes dos seus. É por isso que o pluralismo ideológico e a promoção dos valores da liberdade são assegurados na Constituição e em todas as normas internacionais antes mencionadas, sem que haja menção, em qualquer uma delas, à neutralidade como princípio diretivo”, afirmou Barroso em seu voto.
Ainda que o STF não defendesse a pluralidade de ideias – reforçando o que já consta na Constituição – como um professor de História, por exemplo, seria neutro ao ensinar sobre o nazismo? Pela lei proposta pelo Escola sem Partido, o professor não poderá alertar o quanto essa ideologia é nefasta, mesmo diante da multiplicação de células neonazistas e de episódios de estudantes, com suásticas no braço, entrando em escolas para matar todo mundo? Como o nazismo seria abordado em sala de aula?
E quando a aula for sobre escravidão? O professor será denunciado ao ensinar que essa atrocidade contra o ser humano é a raiz de muitos males, entre eles o racismo presente na sociedade, fazendo todos os dias novas vítimas? Ele não poderá dizer em sala de aula que ninguém pode ser prejudicado, julgado e morto pela cor da pele, sob o risco de ser acusado de estar “pregando ideologia”?
Como a neutralidade se aplicaria a esses dois temas? Ser neutro seria relativizá-los? Seria defender que o nazismo pode ter um partido político como outras ideologias? Que é normal ou “liberdade de expressão” pregar que sua raça é superior e defender exterminar as outras?
Outra questão que se impõe também é, uma vez adotada a “neutralidade” no ensino, quem seria o “censor” dessa neutralidade, para julgar se a palavra usada pelo professor, a entonação de sua voz, a expressão facial, os gestos corporais, os exemplos citados podem ser usados em sala de aula ou não?
Quem seria o “iluminado” para dar o veredito de que “isso é neutro” e “aquilo não é neutro”? Será criado um conselho? Quem fará parte? Quem indicará os componentes? A composição será neutra, uma vez que a maior parte dos defensores do projeto se definem como conservadores e de direita?
Estudantes não têm senso crítico?
Outra defesa veemente do Escola sem Partido diz que o projeto é necessário para se evitar uma suposta doutrinação política, de gênero, moral e religiosa nas salas de aula. Nenhuma versão do projeto já protocolada, porém, trouxe provas dessa acusação.
Em discurso certa vez na Assembleia, o ex-deputado Sergio Majeski (PSDB), que é professor, disse que é absurdo supor que o professor tenha o “poder” de doutrinar estudantes, quando mal consegue manter os alunos sentados, prestando atenção na aula.
A tese da “doutrinação” é tratada como se os estudantes fossem uma “folha em branco”, totalmente passivos e cativos à uma suposta e poderosa influência dos professores. Como se não tivessem acesso à internet ou a outras fontes de informação nos círculos sociais que frequentam como família, amigos, igrejas e festas. Como se fosse possível criar crianças e adolescentes em uma bolha.
Ao sugerir que professores fazem a cabeça dos estudantes, os defensores do Escola sem Partido deixam também outra questão para trás: por que crianças e adolescentes deixariam de ouvir seus pais, com quem passam a maior parte do tempo e dentro de uma relação de confiança, para ouvir seus professores? E se isso realmente estiver ocorrendo, a “culpa” seria mesmo da escola ou dos pais, talvez não tão presentes na vida dos estudantes?
E a tal da liberdade?
Outra questão do projeto a ser avaliada é até que ponto as proibições não ferem a liberdade de cátedra dos professores. O artigo 206 da Constituição Federal diz que “o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (…) II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (…)”.
É claro que a mesma lei que dá direitos também dá deveres e os municípios, os estados e a União já têm canais – por exemplo, as ouvidorias – para apurar se determinado profissional abusou do seu direito em sala de aula. Mas criar um ambiente prévio de “caça às bruxas” não seria uma forma de censura? Não seria um atentado à liberdade de cátedra?
Não seria contraditório que os mesmos que pregam a liberdade de expressão como um valor absoluto neguem essa mesma liberdade aos educadores?
Debate acalorado
Nas redes sociais, o debate já começou. O vereador Monjardim, autor de um dos projetos do Escola sem Partido que tramitam na Câmara de Vitória, publicou em seu perfil matéria sobre o tema, o que tem repercutido.
Já o vereador André Moreira (Psol), à frente do Movimento “Escolas pela Democracia”, faz hoje (23) um debate sobre o Escola sem Partido na sede da Adufes (Ufes), às 19 horas. Ele é contrário ao projeto.
A decisão de Piquet de pautar um dia para discutir e votar projetos polêmicos faz parte do pacote de ações que ele tem implementado para dar o que chama de “protagonismo positivo” à Câmara de Vitória.
Segundo ele, é uma forma dos vereadores se prepararem, com argumentos, e não serem pegos de surpresa durante as sessões, além de não inviabilizar as demais atividades da Casa com o mesmo tema. É uma aposta, se vai dar certo aí já são outros quinhentos.
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