PEC quer transformar agentes penitenciários temporários em efetivos sem concurso

Aprovação da PEC 02/2023 na CCJ da Ales: foto com agentes / crédito: Lucas Costa/Ales

Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que tramita na Assembleia tem gerado polêmica e até bate-boca entre os parlamentares. A PEC 02/2023, do deputado Wellington Callegari (PL), quer transformar os inspetores penitenciários temporários em efetivos, dando estabilidade sem passar por concurso público.

Embora a proposta tenha recebido quatro relatórios pela inconstitucionalidade, tanto pela Mesa Diretora quanto pela Procuradoria da Ales, a PEC foi aprovada na Comissão de Justiça, à unanimidade e à revelia dos pareceres técnicos, numa sessão marcada pela pressão de agentes penitenciários que lotaram a galeria.

Os deputados Lucas Scaramussa (Podemos), Raquel Lessa (PP), Lucas Polese (PL), Capitão Assumção (PL), Janete de Sá (PSB) e Coronel Weliton (PTB) acompanharam o parecer do presidente da Comissão de Justiça, Mazinho dos Anjos (PSB), pela aprovação da PEC no colegiado.

Mazinho é advogado e fez um relatório pela constitucionalidade da matéria alegando, entre outras coisas, “insegurança jurídica”, “injustiça social” e até “preconceito aos agentes” para justificar seu parecer favorável. Hoje, o Estado conta com cerca de 1.600 inspetores penitenciários temporários.

A proposta

Callegari protocolou a PEC no dia 10 de abril. A proposta pretende incluir um parágrafo único ao inciso IV do artigo 126 da Constituição Estadual. O inciso trata da criação da Polícia Penal e foi acrescentado à Constituição em 2021.

O parágrafo único que Callegari quer incluir diz: “Nos quadros da Polícia Penal serão aproveitados os inspetores penitenciários, contratados em caráter temporário, com mais de 5 (cinco) anos de serviço contínuo e ininterrupto, que serão submetidos ao regime jurídico único, através do benefício da estabilidade que durará até a aposentadoria destes”.

Na justificativa, ele cita duas emendas: uma federal e outra estadual que tratam da Polícia Penal. A primeira, trata-se do artigo 4º da Emenda Constitucional nº 104/2019, que criou no País as polícias penais, e diz: “O preenchimento do quadro de servidores das polícias penais será feito, exclusivamente, por meio de concurso público e por meio da transformação dos cargos isolados, dos cargos de carreira dos atuais agentes penitenciários e dos cargos públicos equivalentes.”

Para Callegari, ao se referir a “cargos públicos equivalentes”, a lei abriria brecha para incluir os inspetores penitenciários temporários.

Ele também citou o artigo 5º da Emenda Constitucional 115, de 10 de novembro de 2021 (lei estadual que cria a Polícia Penal no ES), que diz: “O preenchimento do quadro de servidores das polícias penais será feito, exclusivamente, por meio de concurso público e da transformação do cargo atual de inspetor penitenciário”.

Segundo Callegari, a lei ao falar da “transformação do cargo atual de inspetor penitenciário” não especifica o tipo de vínculo com o Estado, o que daria brecha para o entendimento de que os inspetores de contratos temporários também poderiam ser beneficiados, além dos efetivos (servidores de carreira).

Callegari: autor da PEC / crédito: Ales

“Há de se olvidar que estes profissionais atuam nessa área há muitos anos, chegando a somar mais de 18 anos de atividade, mesmo tendo que passar, a cada dois anos, por novo processo seletivo. Estes profissionais, ao não serem aproveitados, ficarão em um limbo imenso, pois terão enorme dificuldade de inserção no mercado de trabalho, pelo preconceito difundido na sociedade acerca dos profissionais que atuam nos presídios brasileiros. Sem falar na possibilidade de demissões/exonerações em massa destes profissionais”, diz trecho da justificativa.

O deputado diz ainda que, por serem “DTs” (abreviação de designação temporária), os inspetores não teriam porte de arma, o que colocaria a segurança dos agentes em risco.

Parecer pela inconstitucionalidade e projeto devolvido

Assim que o projeto entrou no sistema, a presidência da Mesa Diretora da Ales apresentou um despacho denegatório (indeferiu), manifestando-se pela inconstitucionalidade com base nos artigos 63 e 91 da Constituição Estadual – que trata sobre projetos que são de competência exclusiva do governador do Estado.

O projeto foi devolvido ao autor (Callegari) que entrou com um recurso para que a matéria fosse encaminhada para a Procuradoria, para a elaboração de parecer técnico.

A Procuradoria analisou o projeto e também se manifestou pela inconstitucionalidade formal e material da PEC. O parecer foi acompanhado pelo coordenador da setorial e pelo procurador-geral da Ales, ou seja, três procuradores opinaram tecnicamente pela rejeição da matéria.

O parecer esmiuçou o motivo da proposta ser inconstitucional: em relação à forma, disse que trata-se de uma matéria de competência exclusiva do chefe do Poder Executivo, ou seja, não poderia ter sido protocolada por um deputado:

“Com efeito, as matérias relacionadas ao funcionamento e as atribuições de órgãos do Poder Executivo devem estar inseridas em norma cuja iniciativa é reservada àquela autoridade (governador). Assim, a presente proposta contém vício de inconstitucionalidade formal subjetiva”, diz trecho do parecer.

E, com relação ao mérito, o relatório detalhou que fere o princípio da isonomia: “Reconhecer a possibilidade de aproveitamento dos cargos de contratação temporária nesta situação particular também lesaria a isonomia entre entes, mas também entre trabalhadores, da mesma categoria (diferentes estados), bem assim entre os trabalhadores beneficiados na proposta em análise frente aos integrantes de outras categorias, que poderiam questionar a possibilidade de contratação na via transversa, como pretendido por meio da presente proposta”.

Em outras palavras, nada impediria de, se aprovada, a lei servir como base para outras categorias de servidores. O que impediria, por exemplo, um professor DT de querer ter o mesmo benefício de ser transformado em servidor efetivo sem passar por concurso, já que haveria um precedente?

O parecer também afirmou que a PEC vai de encontro à Constituição: “Ademais, não se pode prescindir de concurso público para o preenchimento de cargos públicos, conforme previsão expressa do art. 37, II, da CRFB/1988, no que resta violado o princípio do provimento do concurso público. Por todo o exposto, pede-se vênia, por entender que a referida proposta é eivada de vício de inconstitucionalidade insanável”.

O parecer ainda rebate argumento usado pelo autor da proposta para justificá-la: “A despeito de os trabalhadores se encontrarem há longo período contratados por meio de contratação temporária, esse fato não é capaz de legitimar o seu aproveitamento e dispensar a realização de concurso público. Reitera-se que o E. STF já se manifestou inclusive acerca da impossibilidade da teoria do fato consumado em casos como esse”.

E a conclusão da Procuradoria da Ales foi pela ilegalidade da proposta.

Bate-boca e relatório favorável

A PEC, então, seguiu para a Comissão de Justiça da Ales e o presidente do colegiado, Mazinho dos Anjos, que também ficou como relator, foi de encontro à manifestação da Procuradoria, apresentando um parecer favorável ao projeto.

Mazinho deu parecer favorável à PEC na CCJ / crédito: Lucas Costa/Ales

Ele citou as mesmas legislações apresentadas por Callegari em sua proposta (Emenda 104/2019 e a 115/2021) e disse que a falta de um texto claro possibilita diversas interpretações e insegurança jurídica.

“Ao afirmar que cargos públicos equivalentes serão transformados em Polícia Penal, a Emenda Constitucional nº 104 não utilizou um termo claro, estabelecendo um cenário de insegurança jurídica e, consequentemente, possibilitando diversas interpretações”.

Sobre a Emenda 115, escreveu: “Novamente, nos deparamos com uma situação muito similar ao que foi comentado no parágrafo anterior sobre o termo utilizando pela Emenda nº 104. Isso porque ao afirmar sobre a transformação do cargo atual de inspetor penitenciário, a Constituição Estadual não deixou claro se estava se referindo apenas aos inspetores que são concursados ou, também, aos inspetores que foram contratados por designação temporária. Considerando que ambos ocupam o mesmo cargo, estamos, novamente, diante de uma situação de extrema insegurança jurídica, permitindo diversas interpretações”.

Mazinho também citou teses que defendem que os servidores contratados tenham os mesmos direitos que os servidores concursados, fez coro à justificativa de Callegari de suposto preconceito que os agentes penitenciários sofreriam e que o Estado poderia estar praticando uma “enorme injustiça social” se não aproveitasse o trabalho já desenvolvido pelos agentes temporários.

“Por tais razões, entende-se que a proposição merece tramitar, seguindo para o plenário para a ampliação dos debates, e para que se expresse a vontade da maioria. Diante de todo o exposto, meu parecer é pela constitucionalidade e pela legalidade da PEC nº 2/2023, de autoria do deputado Wellington Callegari”, decidiu o relator.

No último dia 12, a Comissão de Justiça se reuniu para apreciar o relatório. O vice-presidente do colegiado, Denninho Silva, pediu vista do projeto, o que virou motivo de uma discussão acalorada com Callegari, inclusive com troca de ofensas (veja o vídeo abaixo).

No dia 19, Mazinho colocou o relatório em votação – sem o parecer de Denninho, que faltou por conta de uma licença médica e devolveu o projeto sem opinar, segundo disse Mazinho na sessão.

Denninho rebateu Mazinho. À coluna, disse que não devolveu o projeto – que ainda estaria em seu gabinete – e que, mesmo assim, o presidente, Mazinho, o colocou em votação. Disse ainda que estava doente no dia da votação e que se fosse dar seu parecer seguiria a Procuradoria e opinaria pela inconstitucionalidade.

A PEC foi aprovada por unanimidade na CCJ. Logo após a aprovação, Mazinho suspendeu a sessão para fazer foto com os agentes penitenciários, que acompanhavam da galeria e lotaram o plenário.

A proposta segue agora para as comissões de Segurança e de Finanças, presididas pelos deputados Danilo Bahiense (PL) e Tyago Hoffmann (PSB), respectivamente. Se também forem aprovadas nessas comissões, segue para o plenário, onde precisa ser aprovada em dois turnos e por 3/5 dos deputados (18 votos) para virar lei.

Concurso aberto

O governo, por meio da Secretaria de Estado da Justiça (Sejus), está acompanhando a tramitação da PEC. O secretário da Justiça, André Garcia, falou com a coluna sobre o assunto:

“Estou acompanhando. A decisão da Assembleia é soberana, mas minha opinião pessoal é que se trata de uma proposta que tem óbice constitucional. Essa transformação de cargos para provimento no serviço público não é possível, mas é uma decisão da Ales”, disse o secretário.

Ele afirmou que há um concurso aberto para o preenchimento de 600 vagas para o cargo de inspetor penitenciário. “Temos um concurso público aberto, com prova já no dia 8 de outubro. São 600 vagas mais formação de cadastro de reserva. Nossa intenção é convocar os aprovados para compor o quadro da Polícia Penal, que será regulamentada em breve”.

Segundo Garcia, a convocação dos aprovados será no ano que vem. Atualmente, segundo ele, há cerca de 1.900 inspetores efetivos (com concurso) e 1.600 temporários (sem concurso).

Categoria dividida

Ao contrário do que ocorreu na CCJ, a PEC não é uma unanimidade entre a categoria dos agentes penitenciários. A grosso modo, os inspetores temporários são a favor e os efetivos, contra.

Dois grupos se sobressaem: o “Movimento dos Equivalentes”, a favor da PEC, e o “Mudar” – Movimento União, Dignidade, Ação e Reconstrução da Polícia Penal –, que é contra.

Um dos líderes dos Equivalentes, o inspetor Rossean Viana, que há 12 anos atua no sistema prisional como contratado temporariamente, defendeu a PEC e disse que ela é humanitária. Ele vai fazer a prova do concurso público, mas disse que muitos agentes não podem competir de igual para igual com outros candidatos.

“Há mais de 11 anos não tem concurso para esse cargo. Um cargo que exige muito do servidor. Temos hoje homens e mulheres com 40, 50 anos que não têm mais condições físicas e psicológicas para estar passando por um concurso público. E boa parte do prejuízo, na saúde física e mental, foi causado pela prestação de serviço ao Estado. Eles não tiveram oportunidade de fazer o concurso nos últimos 10 anos e hoje, por causa da idade e dos problemas acarretados ao longo da vida, não têm condições de disputar no mesmo nível que um jovem que nunca entrou numa penitenciária. Então, nossa PEC é também humanitária”.

Viana quer também que não seja limitado o período de tempo de serviço (mínimo de 5 anos ininterruptos) para que o servidor temporário vire efetivo e disse que vai tentar mudar esse ponto nas demais comissões.

Plenário da Ales: para ser aprovada, PEC precisa de 18 votos / crédito: Lucas Costa-Ales

Já o inspetor Ediano Falcão, que atua há 13 anos no sistema prisional como efetivo, disse ser contra. Membro do grupo Mudar, ele diz que a PEC é ilegal e que os colegas de trabalho estão sendo enganados por um ato “politiqueiro”.

“É uma PEC ilegal. Já tentaram fazer isso em dois estados e a Justiça derrubou. E aqui o rito vai ser o mesmo. É um ato inconstitucional e politiqueiro. Pais de família estão sendo enganados. Se for aprovado, nós vamos acionar o Ministério Público”, disse Falcão.

Segundo ele, o que está ocorrendo é uma interpretação equivocada sobre uma expressão da emenda constitucional que criou a Polícia Penal. “Eles se apegaram à palavra ‘equivalentes’, mas essa palavra significa atividades correlatas, mas no que se refere ao servidor de carreira”, afirmou.

Já o presidente da Associação dos Inspetores Penitenciários e Policiais Penais do Estado do ES (Assipes), Harley Taboada, ao ser procurado, disse que a associação não iria se manifestar. A Assipes tem, entre seus filiados, inspetores efetivos e temporários.

 

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