O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, que a cada ano faz um raio-X sobre a criminalidade e a segurança, trouxe dados alarmantes e mostrou o quanto é perigoso ser mulher nesse país. Houve um crescimento estrondoso de todas as formas de violência contra mulheres: assédio, violência doméstica e sexual, perseguição, agressões e assassinatos.
E o pior: os dados mostram que o local que deveria ser o mais seguro, tornou-se o mais perigoso: a maioria dos estupros e feminicídios ocorreu dentro de casa, o que desafia as políticas públicas já postas e convoca outros setores da sociedade, além das forças policiais, a participarem do debate de enfrentamento a essa mazela social.
Produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o anuário traz dados de 2022 e mostra que o ano passado registrou o maior número de estupros da série histórica (desde 2011).
Foram 74.930 vítimas, um aumento de 8,2% em relação a dados de 2021. Entre os alvos, 88,7% são do sexo feminino. Os agressores, em 86,1% dos casos, eram conhecidos (amigos, vizinhos ou familiares).
De acordo com o anuário, as crianças e adolescentes são as maiores vítimas da violência sexual: 10,4% eram bebês e crianças com idade entre 0 e 4 anos; 17,7% tinham entre 5 e 9 anos e 33,2%, entre 10 e 13 anos. Ou seja, em 61,4% dos casos de estupro, as vítimas tinham no máximo 13 anos.
E um dado que chama a atenção: em média, apenas 1 em cada 10 estupros e estupros de vulnerável (quando a vítima é menor de 14 anos ou quando por enfermidade ou deficiência não pode oferecer resistência) no Brasil ocorreram em via pública. Em 68,3% dos registros, os crimes ocorreram dentro da casa das vítimas. Quando se destaca apenas o estupro de vulnerável, a proporção é ainda maior: 71,6% dos crimes ocorreram na residência.
“Em suma, quando falamos dos estupros e estupros de vulnerável que ocorreram em 2022, estamos falando de um tipo de violência essencialmente intrafamiliar, que acontece em casa, durante o dia, e que tem como principais vítimas pessoas vulneráveis. Esses são fatores que tornam o enfrentamento a esse tipo de violência sexual extremamente desafiador”, registra o anuário.
Esse dado também é semelhante quando se analisa os índices de violência doméstica. Foram 245.713 registros de agressões no País, um aumento de 2,9% com relação a 2021; 613.529 casos de ameaças (+ 7,2%); 53.918 registros de stalking (perseguição). As tentativas de feminicídios aumentaram 16,9% e os feminicídios, 6,1% – 1.437 mulheres foram mortas pelo simples fato de serem mulheres ou em decorrência de violência doméstica. E, de cada 10 mulheres vítimas de feminicídio, 7 foram assassinadas dentro de casa.
E por que a coluna chama a atenção para esse mapeamento sobre o local do crime? Porque é o tipo de ocorrência que dificilmente será evitada somente com policiamento ostensivo, com mais policiais e viaturas rondando nas vias públicas.
Normalmente quando a polícia é acionada o crime já ocorreu. Para se combater esse tipo de violência que normalmente ocorre entre quatro paredes é preciso empenho do Estado na criação de programas específicos e de outras instituições e setores da sociedade, a começar pela família.
É preciso meter a colher
De acordo com o anuário, uma pesquisa realizada pelo doutor em Ciências Jurídico-Criminais Thiago Pierobom de Ávila – “Políticas públicas de prevenção ao feminicídio e interseccionalidades” – mostrou que, na maior parte dos casos de feminicídios, os filhos, familiares ou amigos das vítimas já tinham presenciado algum tipo de agressão contra a vítima.
Já no estudo “Raio-X do feminicídio em São Paulo: é possível evitar a morte”, do Ministério Público de SP, ficou demonstrado que 97% das vítimas de feminicídio não tinham medidas protetivas quando foram mortas, a maior parte sequer havia buscado ajuda das autoridades policiais.
Muitas mulheres ainda sofrem caladas com a violência doméstica dentro de seus lares e não denunciam por uma série de questões: medo, dependência financeira, dependência emocional, dogma religioso… E é aí que a família e os amigos têm papel fundamental: de acolher, socorrer, apoiar e também de denunciar.
A sociedade precisa se conscientizar que violência doméstica não é um assunto do casal ou, em caso extremo, um problema somente da polícia. É preciso meter a colher e ajudar a construir uma rede de apoio que dê segurança à vítima não só para denunciar, mas também para se libertar, de uma vez por todas, de um relacionamento abusivo e agressivo.
É importante destacar que a violência contra a mulher não está restrita às camadas mais vulneráveis da sociedade. O anuário cita estudos acadêmicos que mostram a relação entre a violência e o fato da mulher começar a trabalhar fora ou possuir uma renda ou grau de escolaridade maior que o do companheiro. “Nessas situações a violência é utilizada como forma de restabelecer a superioridade masculina sobre as mulheres”, diz o anuário.
É uma problemática que precisa ser pautada nos debates legislativos e na construção de políticas públicas para o governo. Não basta só aumentar o número de policiais nas ruas. É preciso endurecer as leis e as sanções contra os agressores e criar programas que deem segurança às mulheres vítimas de violência.
Mas não para por aí. Esse debate precisa fazer parte das reuniões de condomínio, dos sermões das igrejas, das conversas nos bares, do RH das empresas, dos almoços familiares, das consultas médicas, das idas ao salão de beleza e das salas de aula.
O papel da escola no combate à violência sexual
O anuário também trouxe pesquisas e estudos relevantes sobre a importância da escola como espaço de proteção de crianças em situação de vulnerabilidade, tanto no sentido de prevenir como de denunciar violências sofridas.
“Estudos recentes sobre abuso sexual contra crianças no período da pandemia têm sugerido que o fechamento das escolas em função das medidas de isolamento social pode ter ampliado a vulnerabilidade de crianças e, inclusive, que parte das notificações decorre de abusos iniciados e/ou ocorridos durante o lockdown, mas que só vieram à tona quando as crianças voltaram a frequentar as escolas”, diz o anuário.
O relatório “Child Maltreatment 2019”, produzido pelo Child Welfare Information Gateway e também citado no anuário, mostrou que os profissionais que mais reportam episódios de maus-tratos e abusos contra crianças nos Estados Unidos são aqueles vinculados à educação (21%).
Embora não haja estudos semelhantes no País, em conversas com a coluna De Olho no Poder, delegados que atuam na proteção de crianças e adolescentes já relataram que muitas denúncias de violência sexual partiram de professores que observaram um comportamento diferente no aluno e passaram a investigar.
Além do papel de denunciar, a escola também pode e deve atuar na prevenção, levando conhecimento aos estudantes para que eles possam se proteger. Muitas crianças levam tempo para contar que foram vítimas de um abuso porque, muitas vezes, não conseguem discernir que o que sofreu é uma violência, principalmente quando parte de alguém conhecido.
O anuário mostrou que em 64,4% dos casos de estupros contra crianças (0 a 13 anos), o agressor é um familiar e a maior parte dos crimes, como a coluna já citou no início desse texto, ocorre dentro de casa.
Mas como a escola pode contribuir mais com essa temática se hoje ainda é um tabu tratar qualquer coisa relacionado a sexo na sala de aula? Há casos em que professores são atacados e acusados de “doutrinação” por levarem esse tema aos estudantes.
É preciso deixar a histeria de lado e entender que nem todas as crianças têm a oportunidade de aprender, em casa, a se defender de situações de abuso. Muitas, na verdade, estão sofrendo nas mãos daqueles que deveriam protegê-las.
Esse debate não pode mais ser adiado e nem virar palanque político para pautas extremistas e que nada contribuem para a proteção das crianças.
O cenário no Espírito Santo
O Espírito Santo registrou, em 2022, 1.736 casos de estupros, sendo 1.259 casos de estupros de vulneráveis. O índice representa um aumento de 14,9% com relação a 2021 (quando foram registrados 1.501 casos) e uma taxa de 45,3 casos para cada 100 mil habitantes – o que é maior que a taxa média registrada no País, de 36,9 casos para cada 100 mil habitantes.
O Espírito Santo está em 13º lugar entre os estados com mais casos desse tipo de crime. Só a título de comparação, em 1º lugar, com o maior número de casos de estupros por 100 mil habitantes está Roraima, com 114,1 casos/100 mil. A menor taxa está na Paraíba, com 13,7 casos para cada 100 mil habitantes. É bom frisar que há sempre a ressalva da subnotificação dos crimes sexuais e isso não só no País.
Os casos de assédio sexual e importunação sexual também aumentaram no Estado. De 2021 para 2022 pularam de 368 para 421 registros de assédio (aumento de 13,6%) e os de importunação, foram de 56 para 156 casos, um salto de 192,3%.
Já os casos de agressões provenientes de violência doméstica em solo capixaba, aumentaram em 16,9% no ano passado. Mas a taxa por 100 mil habitantes é menor que a média nacional. No Espírito Santo é de 115,8 e a média nacional é de 236,7.
Com relação às ameaças às mulheres, o número registrado foi de 12.473, um aumento de 10,3% com relação a 2021. A taxa é de 640,7 ameaças para cada 100 mil mulheres, a média no País é de 591. Os casos de perseguição (stalking) registrados por mulheres capixabas pularam de 198 para 508 e o de violência psicológica, de 155 para 388.
Dos 1.437 feminicídios registrados no ano passado em todo o país, 33 (2,29%) foram registrados no Espírito Santo. O número, comparado ao registrado no Brasil inteiro, parece pequeno, mas quando se leva em conta a população do Estado, a taxa de feminicídios por 100 mil mulheres, foi de 1,7 crimes, maior que a média nacional de 1,4.
“Cultura machista”
O secretário de Estado da Segurança Pública, coronel Alexandre Ramalho, lamentou o aumento da violência contra mulheres e pessoas vulneráveis e disse que é necessário combater a “cultura machista”.
“Lamentavelmente esses crimes ocorrem com uma incidência muito forte, o que mostra uma cultura machista, uma cultura que o homem acha que pode fazer tudo com a mulher ou com o vulnerável. É muito difícil atuar na prevenção por parte das nossas polícias, para evitar que o crime aconteça, porque geralmente esses crimes ocorrem entre quatro paredes, com uma proximidade muito grande do autor com a vítima, mas ainda assim, nós lutamos para reverter”.
O secretário citou o programa “Homem que é Homem”, encampado pela Polícia Civil, que atua com palestras direcionadas ao público masculino, e a patrulha Maria da Penha, que faz visitas nas residências das mulheres vítimas de violência.
“É importante que tenhamos um diálogo aberto nas escolas, a educação tem papel preponderante, e também nas igrejas, com diálogo franco, além das famílias que precisam conversar, acompanhar e diagnosticar essas questões, impedindo que esse crime aconteça. Mas, acontecendo, é preciso relatar às autoridades policiais para que as providências sejam adotadas”.
Ramalho também defendeu um endurecimento da legislação penal para punir os criminosos e evitar que eles voltem a cometer os mesmos delitos. “Esse conjunto de ações ajuda a minimizar”, disse o secretário.