O Legado do Apple Daily e a Força das Ideias

A última manchete do jornal Apple Daily, “Quando uma maçã é enterrada embaixo do solo, suas sementes dão fruto a uma árvore recheada de maiores e mais bonitas maçãs”, não é apenas um epitáfio de uma publicação, mas também uma mensagem de resistência e esperança em tempos de repressão, um testemunho de que ideias podem ser podadas, mas jamais erradicadas.

O Apple Daily, fundado em 1995 por Jimmy Lai, simbolizava muito mais do que um jornal. Era uma voz contra as práticas autoritárias do governo chinês em Hong Kong, uma força vigilante que insistia em reportar a verdade, mesmo sob as ameaças mais severas. Sua trajetória ilustra a batalha entre a liberdade de expressão e o autoritarismo, um embate que ultrapassa fronteiras e se manifesta em diferentes contextos globais.

Quando o Apple Daily foi forçado a encerrar suas operações em 2021, não foi apenas uma derrota para a imprensa livre de Hong Kong, mas também um marco sombrio na escalada repressiva contra a autonomia da região. Ainda assim, a escolha das palavras de sua última manchete revela uma compreensão profunda da natureza das ideias: ao serem enterradas, germinam como sementes. Essas sementes crescem e geram frutos maiores, mais robustos e mais resilientes.

Essa imagem remete ao conceito de “efeito Streisand”, no qual tentativas de suprimir informação acabam amplificando seu alcance. Ao sufocar o Apple Daily, o governo chinês criou um ícone da liberdade. A última manchete ressoou globalmente, despertando solidariedade e ampliando a conscientização sobre os abusos enfrentados em Hong Kong. A maçã enterrada deu origem a novas sementes de resistência.

O fechamento do Apple Daily evidencia uma verdade desconfortável: a liberdade de expressão não é um privilégio garantido, mas um campo de batalha em constante disputa. Governos autoritários compreendem o poder da palavra escrita e fazem de tudo para controlá-la. Essa dinâmica revela um paradoxo interessante. Regimes autoritários são, ao mesmo tempo, incrivelmente poderosos e profundamente frágeis. Precisam sufocar dissidências porque temem a capacidade das palavras de expor suas falhas.

No entanto, a história mostra que ideias têm um poder singular de persistir. Da Revolução Americana, moldada pelos panfletos de Thomas Paine, aos samizdat clandestinos na União Soviética, a liberdade de expressão sempre foi um precursor de mudanças transformadoras. O Apple Daily se posicionou nessa tradição, lembrando-nos que a coragem de falar é a primeira semente da resistência.

A repressão ao Apple Daily é apenas um capítulo de uma narrativa maior. Hong Kong, outrora uma metrópole vibrante e um símbolo de liberdade no leste asiático, tornou-se um laboratório de práticas autoritárias. A Lei de Segurança Nacional, promulgada em 2020, oferece um pretexto amplo para silenciar vozes dissidentes, utilizando a segurança do Estado como justificativa.

Embora o caso de Hong Kong seja específico, ele reflete tendências globais preocupantes. Em democracias consolidadas, vemos tentativas de controlar a mídia sob pretexto de “regulação”. No Brasil, debates sobre a regulação de plataformas digitais levantam questões sobre limites à liberdade de expressão. A lição de Hong Kong é clara: quando os limites da liberdade de expressão são ultrapassados, todo o tecido democrático sofre.Contudo, a metáfora da maçã enterrada sugere algo ainda mais profundo: cada tentativa de silenciamento planta uma semente que, em algum momento, germina. A luta pela liberdade de expressão nunca termina, mas cada geração a carrega e a fortalece. Quando a história olhar para trás, o epitáfio do Apple Daily será visto não como o fim de uma era, mas como o início de outra. Suas sementes já estão dando frutos em corações e mentes ao redor do mundo. Pois, como a manchete sugere, a liberdade, assim como a natureza, sempre encontra um caminho.

André Paris
Palestrante, Consultor em Governança e Inteligência Artificial, Privacidade de Dados e Compliance.