Não foi só a Igreja Católica que perdeu seu maior líder. Ontem (21), na segunda-feira pós-Páscoa, o mundo amanheceu em choque pela morte de Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, uma das figuras mais influentes e humanas da contemporaneidade.
Sua partida representa não apenas o fim de um pontificado, mas a ausência de uma voz que insistia no diálogo, na compaixão, na paz e na justiça social, mesmo diante de um mundo cada vez mais egoísta, intolerante, polarizado e bélico.
Líder espiritual de bilhões de pessoas, nos 12 anos em que esteve como papa, Francisco iniciou uma série de mudanças que promoveram uma maior inclusão na Igreja Católica. Tocou em temas polêmicos, como a presença feminina em cargos de liderança e a relação da igreja com casais divorciados e homoafetivos.
Mas, o legado do papa ultrapassa os muros do Vaticano e a esfera da religião. Considerado um papa com visão política bastante aguçada, a vida de Francisco inspira, com exemplos de humildade, integridade e combate à desigualdade social, líderes em todo o mundo. E ele tinha essa intenção de, alguma forma, inspirar políticos a fazerem o bem.
“A política é uma das formas mais altas da caridade”
Em agosto do ano passado, Francisco gravou, para a TV do Vaticano, uma mensagem de vídeo com a sua intenção de oração para aquele mês. O “Vídeo do Papa” tinha como destinatário os líderes políticos ao redor do mundo e um apelo para que eles se dedicassem ao serviço de seu povo.
“Atualmente a política não tem boa fama: corrupção, escândalos, está distante do dia a dia das pessoas. Mas, podemos avançar em direção à fraternidade universal sem uma boa política? Não”, iniciou o papa em sua mensagem. E continuou:
“Como disse Paulo VI, a política é uma das formas mais altas da caridade, porque busca o bem comum. Falo da Política com maiúsculas, não da politicagem. Falo da política que escuta a realidade, que está a serviço dos pobres, não da que está escondida em grandes edifícios com longos corredores, falo da política que se preocupa com os desempregados e sabe muito bem como pode ser triste um domingo quando a segunda-feira é um dia a mais sem poder ir trabalhar. Se a vemos assim, a política é muito mais nobre do que aparenta”, disse no vídeo.
Ele ainda agradeceu aos políticos que desempenham o ofício com vontade de servir e não com sede de poder e rezou para que essas lideranças trabalhem pelo povo: “Trabalhando pelo desenvolvimento humano integral, trabalhando pelo bem comum, cuidando dos que perderam seu emprego e dando prioridade aos mais pobres”, concluiu o papa.
A mensagem do papa não ficou só no discurso. Desde o início de seu pontificado ele buscou colocá-la em prática e enfrentou muita resistência, dentro e fora da igreja, por conta do seu posicionamento visto, por muitos, como muito “político” e “progressista”.
Não cabe à coluna De Olho no Poder, nesse espaço, analisar o mérito dos sermões e posicionamentos do papa Francisco diante dos dogmas da Igreja Católica, mas sim trazer aquilo que é inegável: suas lições e influência no cenário político mundial.
Acolhimento aos pobres e refugiados
A começar pelo nome que escolheu – Francisco, uma referência a São Francisco de Assis e a seu exemplo de humildade e defesa dos pobres e do meio ambiente – o papa foi uma voz intransigente na defesa dos excluídos e na condenação de um sistema político-econômico que aumentasse a desigualdade e a exclusão sociais e a degradação do planeta.
Instituiu o Dia Mundial dos Pobres em 2017, para incentivar ações de solidariedade e políticas públicas que olhassem para as comunidades mais vulneráveis. Voltou sua atenção para as periferias e para os marginalizados – lembrados, muitas vezes durante as campanhas políticas, mas esquecidos durante o restante dos mandatos.
Enquanto líderes mundiais faziam campanhas e até eram eleitos com discursos anti-imigração, papa Francisco visitava Lampedusa – ilha italiana no Mar Mediterrâneo que se tornou o epicentro da crise migratória na Europa – e jogava flores ao mar, em lamento pelos mortos.
Filho de imigrantes, Francisco chegou a dizer em sua mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, em 2023, que o migrante “é Cristo que bate à nossa porta”, lembrando da história de José, Maria e Jesus, que tiveram de fugir para o Egito para escapar da fúria do rei Herodes.
Francisco chamou à responsabilidade os governantes, mas também cobrou da comunidade internacional um posicionamento. “É necessário um esforço conjunto de cada país e da comunidade internacional para assegurar a todos o direito de não ter que emigrar, ou seja, a possibilidade de viver em paz e com dignidade na própria terra”, disse.
Ele também criou espaços, no Vaticano, para acolher refugiados. Ensinou, com seu próprio exemplo, que os governantes precisam colocar os “últimos” em primeiro lugar. Afinal, são eles que mais dependem do poder público.
Insistiu e pregou que a política de acolhimento aos mais necessitados é também uma política de pacificação social e de fortalecimento da democracia.
Preocupação com o meio ambiente
O papa assinou duas encíclicas (documentos oficiais da Igreja Católica), em 2015 e 2023, sobre a proteção do meio ambiente em meio às crises climáticas, colocando o ser humano como “guardião da criação” – ou seja, responsável em proteger o meio em que vive. Ele também cobrou, dos governantes, medidas para a solução do problema.
A primeira encíclica “Laudato Si” (Louvado Seja) foi lançada na época da Conferência do Clima de Paris e impactou o evento. Ela também foi considerada um marco para a Igreja Católica, ao elevar a situação climática a um nível moral e espiritual.
Francisco colocou no centro da mesa de discussões dos maiores líderes mundiais a necessidade urgente de políticas públicas, sustentáveis e de longo prazo, que protegessem a “Casa comum” – como chamou o planeta Terra.
Inspirado na encíclica, foi criado no Brasil um projeto de reflorestamento do Cerrado com a plantação de 8 milhões de mudas, entre outras ações.
E hoje, é impensável a qualquer gestor, seja no âmbito municipal, estadual ou nacional, ignorar a crise climática e não propor soluções.
Até porque ela se faz presente no dia a dia do cidadão, seja com enchentes causadas por chuvas torrenciais, levando destruição e tragédia principalmente a comunidades mais vulneráveis, ou com a seca que devasta plantações, aumentando a escassez e o encarecimento de alimentos e, em consequência, a fome.
Humildade como estilo de vida
A humildade e a simplicidade do chefe da Igreja Católica também são, ou deveriam ser, virtudes a serem perseguidas por quem aspira iniciar uma carreira política. Desde o início do seu pontificado, Francisco rejeitou o luxo e a ostentação que seu cargo lhe proporcionava.
Recusou morar no Palácio Apostólico, dispensou o uso de carros luxuosos e até pregou contra, afirmando que padres não deveriam dirigir carros de luxo.
Adotou uma linguagem simples e mais acessível ao povo e chegou a limitar as missas em latim – o que lhe trouxe bastante dor de cabeça com lideranças internas que resistiam às mudanças. Usava roupas modestas, recusando mantos extravagantes bordados a ouro.
Pedia que os líderes da igreja não fossem “príncipes”, mas pastores com cheiro de ovelhas, numa defesa de que a igreja deveria estar perto do povo. Lavou os pés de presidiários e muçulmanos na Semana Santa, numa das maiores demonstrações simbólicas de servir ao próximo.
Francisco viveu esses valores, que fazem parte da essência do Cristianismo e que transcendem a religião. Na política, a humildade e a simplicidade permitem que o governante esteja mais próximo do cidadão, que ele faça bom uso do dinheiro público, que não use o cargo para autopromoção e que esteja aberto às críticas e ao reconhecimento dos próprios erros.
É usar a política como serviço, para o bem comum. É entender que, ao ser eleito, ninguém recebe carta branca para fazer o que quer e nem autoridade para estar acima de ninguém. É, sobretudo, servir ao povo que o elegeu.
Escuta e diálogo antes das decisões
Francisco sempre destacou a importância da escuta no processo de diálogo, incentivando líderes a ouvirem antes de agir. Ele acreditava que essa abordagem poderia construir pontes, em vez de muros, e trazer uma resolução pacífica para os conflitos.
Em 2019, no Sínodo da Amazônia, quando convocou representantes de todos os países da Amazônia Legal, Francisco ouviu atentamente a todas as intervenções e, só depois, escreveu a Exortação Apostólica “Querida Amazônia”, sobre a importância da floresta e dos povos indígenas e ribeirinhos em sua preservação.
Antes de iniciar também uma reforma na Cúria Romana, Francisco fez diversas consultas com cardeais e bispos e criou um conselho para aconselhá-lo.
Também foi o primeiro papa a visitar a península arábica e a se encontrar com líderes muçulmanos no Egito e nos Emirados Árabes. Desse encontro, resultou a assinatura do “Documento sobre a Fraternidade Humana”, um apelo à tolerância, ao fim das guerras religiosas e de um diálogo inter-religioso.
Em 2022, falando aos membros da Coordenação das Associações para a Comunicação (Copercom), papa Francisco afirmou que “a escuta é indispensável para o diálogo”.
E o diálogo é fundamental para a boa política.
Em tempos de discursos inflamados e de falatórios sem fim nas redes sociais, parar e ouvir o outro, ainda que pense diferente, é essencial para a construção de uma política democrática.
Essa postura pode se traduzir em processos participativos, escuta das bases, busca de consenso mesmo com a oposição. Líderes que, como Francisco, entendem o valor da escuta são mais aptos a governar para todos e não apenas para os seus.
Coragem para enfrentar o que é errado
Como uma última lição – mas não menos importante – trazida pela coluna sobre o legado do papa Francisco para os políticos, está a coragem para enfrentar estruturas corroídas, promover a integridade das instituições e proteger os mais vulneráveis. Foi isso que o Papa Francisco fez ao implementar reformas significativas na Cúria Romana ao longo do seu pontificado.
Quando Francisco assumiu o papado, em 2013, a Igreja Católica atravessava uma de suas maiores crises de credibilidade. Os escândalos de abuso sexual vinham se acumulando, a máquina do Vaticano era dominada por disputas internas e sofria denúncias de corrupção.
O papa enfrentou com firmeza a cultura do silêncio nos casos de abuso, removeu clérigos de alto escalão, criou uma comissão para proteger os menores e estabeleceu normas rígidas de responsabilização de bispos e acolhimento das vítimas.
Na parte administrativa, publicou a Constituição Apostólica “Praedicate Evangelium”, em 2022, dando mais transparência e descentralizando o poder da Cúria Romana. Promoveu auditorias nas contas do Vaticano e abriu espaços para leigos e mulheres em cargos de liderança.
Assim como em outras de suas ações, Francisco também aqui enfrentou resistências internas. Mas seu exemplo passa a lição: na igreja ou na política, não há espaço para ser tolerante com injustiças e corrupção.
Pois não há boa política sem enfrentamento das distorções, sem transparência nos processos e, principalmente, sem disposição para desagradar, em alguns casos, os próprios aliados.
Francisco provou, com sua vida, que a escolha pela boa política é possível e que quando orientada pela escuta, pela humildade, pela coragem e pela busca sincera pelo bem comum pode – e deve – ser uma ferramenta de transformação social. Uma lição e tanto para os que já se preparam para a corrida eleitoral do ano que vem.
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