
O que começou como um protesto local contra aumento de tarifa de transporte público, em São Paulo, em junho de 2013, foi o estopim para uma série de manifestações Brasil afora.
Uma década depois, as consequências daquele movimento que se dizia “contra tudo e contra todos” ainda é objeto de estudo e seus significados são desafios para historiadores e cientistas sociais.
De lá para cá, todos são unânimes em um ponto: a imagem da classe política partidária e as relações entre sociedade civil e governos nunca mais foram as mesmas. E a polarização foi deixada como herança.
Pesquisadora do tema, a professora Euzeneia Carlos, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), acredita que o maior legado das chamadas Jornadas de Junho de 2013 é o novo significado que as ruas, como palco de reivindicações políticas pela sociedade civil, passam a ter, não importando o teor dessas pautas.
Pós-doutora em Sociologia Política e pesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), ela aponta que essas manifestações foram as mais emblemáticas no período da pós redemocratização brasileira, comparando com o que se observou a partir do fim da ditadura militar em 1985, a promulgação da Constituição Brasileira em 1988 e o retorno das eleições diretas para presidente em 1989.
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Ela cita que, em relação ao alcance e abrangência, o Movimento das Diretas Já (1983-1984) e o Fora Collor (1992), também mobilizaram a sociedade como um todo. Porém, o que aconteceu em 2013 não girava em torno de uma única bandeira.
“O ciclo de protestos de junho de 2013 não resultou em torno de um único movimento social, mas ali havia vários movimentos, grupos organizados, entidades, e também ativistas independentes e cidadãos comuns participando desse tipo de estratégia. Por isso, que ele é entendido como um ciclo, porque são fenômenos que acontecem de tempos em tempos na sociedade, em momentos onde o conflito político consegue agregar uma diversidade de pautas”, compara.
Ela diz que, além da diversidade de protagonistas, as manifestações no ambiente da rua há 10 anos alteraram a forma como a sociedade civil passou a lidar com instituições e partidos políticos.
“Esse legado dos protestos é no sentido de dizer que as instituições da democracia representativa são insuficientes para canalizar e verbalizar as demandas da sociedade. Ou seja, o voto é insuficiente, a representação de eleitos é insuficiente, partidos políticos são insuficientes enquanto canais institucionalizados de verbalização e representação das demandas. E, aí, as ruas vêm exatamente para complementar a democracia representativa, enaltecendo o papel da participação dos cidadãos e dos grupos organizados no aperfeiçoamento e no aprofundamento da democracia”, aponta.
Ovo da serpente
Euzeneia não concorda com o julgamento de um segmento da esquerda brasileira que classifica as manifestações de 2013 como o “ovo da serpente”, de onde saíram, anos depois os protestos pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016 e, mais tarde, a ascensão da extrema direita no Brasil com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018.
Ela explica que nos protestos participavam pessoas ligadas aos polos políticos de esquerda e de direita mas também aquelas que preferiam manter as pautas das passeatas distantes do sistema partidário, os chamados “autonomistas”.
A extrema direita não nasceu ali, mas soube aproveitar do momento, acabou ficando mais em evidência posteriormente.
“O ciclo de junho de 2013 vai ser marcado também pela ampliação e pela visibilidade das demandas à direita, que até então estavam pouco visibilizadas na sociedade. Mas isso não significa que elas não existissem antes. Se nós formos considerar, por exemplo, o papel da emergência dos movimentos de direita e das organizações civis e associações de direita estão, por exemplo, o Revoltados Online, que é um movimento que surge a partir do ativismo digital e que é um movimento de direita voltado à questão da moralidade pública, e que é de 2000″, relembra.
Ela aponta que a partir de 2003, começam a surgir algumas associações e grupos tendo a direita como inspiração intelectual, como o Instituto Millenium, por exemplo, fundado em 2005, ou o Instituto Mises Brasil, iniciado em 2007, promovendo, no campo econômico, o pensamento neoliberal e diminuição do Estado.
Depois de 2013, ruas viram cenário de polarização política
A polarização política nas ruas passa a ser frequente e toma o lugar das pautas por melhorias no serviço público. Isso vai ficando evidente após a reeleição da presidente Dilma Rousseff (cuja vitória não foi bem digerida por um segmento do PSDB, o partido do candidato derrotado em 2014) e as investigações da operação Lava Jato, pela Polícia Federal, iniciada em março de 2014 e presentes na mídia e no dia-a-dia da imprensa a partir de 2015.
As manifestações, diferente das de junho de 2013, começam a ter um formato que de antisistema se transforma em antigoverno, tendo como alvo o Partido dos Trabalhadores (que naquele momento está no poder) e os partidos de esquerda em geral.
A camisa verde-amarela da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) vira praticamente uniforme. E essa polarização chega, cresce e se torna marca presente até hoje nas discussões sobre política e programas de governo.
Direita e esquerda se influenciaram a partir desses embates.
“Essa polarização vai ter uma grande repercussão no campo político-eleitoral. Vai trazer impacto nas três eleições presidenciais (2014, 2018 e 2022), que se seguem ao ciclo de junho de 2013. Vai trazer o crescimento das candidaturas à direita, surgimento de novos partidos políticos de direita e, por outro lado, o surgimento de novos formatos de candidaturas, que são as candidaturas coletivas, caso do que fez o partido PSOL, que teve candidaturas neste formato eleitas, com mandato compartilhado. Isso se torna um novo formato, um novo repertório com experiências de esquerda, mas que outros partidos também começam a utilizar”, descreve.
As candidaturas coletivas, nessa nova concepção, passam a serem conduzidas, segundo Euzeneia, “em torno de grandes causas como protagonismo feminino, direitos LGBT, povos originários, combate ao racismo e direitos das pessoas pretas. Porque aí você não tem um único candidato, mas há um grupo de pessoas vinculadas a vários movimentos de organizações que vão então impulsionar essas candidaturas, algumas delas, com sucesso no pleito eleitoral”, desenvolve.
Para a pesquisadora, após a eleição de 2022, com o retorno da esquerda ao poder no Brasil com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência do Brasil, e de um Congresso Nacional majoritariamente de direita, o clima de polarização se transpõe para o campo do diálogo entre os poderes da República.
“A resposta do Estado às demandas da sociedade passa a ser complexificada, já que ela passa a ser pressionada por esses dois grandes campos, hoje, organizados na sociedade civil e também na sociedade política”, aponta.
A tendência, segunda Euzeneia, é um cenário mais comum em que propostas e discussões de leis passem pelo crivo dessa polarização no Poder Legislativo, dando dificuldades para governos eleitos de esquerda ou centro-esquerda consigam implantar suas políticas.
Esquerda enfraquecida e extrema direita no poder
O sociólogo Pablo Ornelas Rosa, professor titular e permanente dos programas de Pós-Graduação em Sociologia Política e em Segurança Pública da Universidade Vila Velha (UVV), analisa que as heranças das jornadas de junho de 2013 são múltiplas e diversas.
No espectro ideológico, ele que também é doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), aponta um ataque instrumentalizado a movimentos e partidos à esquerda e a ocupação da extrema direita em um espaço privilegiado no campo político.
Inclusive, as Jornadas de Junho de 2013 serão tema de um livro que ele irá lançar em 2024 pela editora Manchster University Press.
A publicação, de autoria coletiva, trará análises e estudos dos professores David Nemer (Universidade da Virgínia, EUA), Augusto Jobim do Amaral (PUC-RS) e Rodrigo Lopes de Barros (Universidade de Boston, EUA).
“Certamente, o antipetismo e sua consequente associação e desqualificação das agendas das esquerdas marcada pela forte influência do lavajatismo parece ter ensejado, coadunado e articulado diferentes forças à extrema direita, que passaram a galgar espaços, inserindo-se no cenário político institucional através do acolhimento de diferentes perfis de sujeitos caracterizados por discurso hostis orientados pela política da inimizade, inclusive de influenciadores digitais, em partidos oportunistas”, desenvolve.
Na análise do sociólogo, a extrema direita, após 2013, se apropria cada vez mais das ruas, antes local tradicional de reivindicações de movimentos e partidos do campo progressista e mais à esquerda.
Paralelamente, também vai se apropriando das redes sociais. A internet que chamava para os atos nas ruas começa a ser utilizada também para propagação de ideias, em sua maioria, conservadores e de direita.
O modo como as pautas (incluindo melhorias de serviços públicos e políticas de inclusão social) são encaradas se modifica com a chegada da extrema direita no debate nacional.
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“Nesse caso, parece que aquela gramática acerca da compreensão sobre democracia e direitos fundamentais que se fazia presente no cenário político brasileiro até 2013 parece ter dado lugar a outra concepção de tradição epistemológica escolástica que confunde economia com religião, justificando as mais diversas formas de violência colonial por meio da crença em uma suposta ‘ordem espontânea’ decorrente do livre mercado concorrencial que deve transformar todas as instâncias da vida na forma-empresa, convertendo o sujeito em um empresário de si que pensa sempre em termos de ganhos, conforme destacou Michel Foucault ao tratar do nascimento do neoliberalismo”, explana.
Ele aponta que o campo da esquerda saiu prejudicado destas manifestações.
“Não apenas porque sua dimensão organizativa foi capturada pela extrema direita (conforme vimos com o que ocorreu como o Movimento Passe Livre – MPL), mas principalmente porque houve certa naturalização da violência política direcionada ao Partido dos Trabalhadores (PT) e a todas as perspectivas à esquerda de modo geral, que foram desqualificadas”, desenvolve.
O especialista vê nos movimentos a partir de 2013 o Brasil como um grande laboratório das organizações políticas e ideológicas de direita, numa sintonia com a ascensão posterior de regimes autoritários observados nos Estados Unidos, Turquia, Índia, Polônia e Hungria.
Em sua análise, há uma nova conjuntura, “inserindo, portanto, uma nova gramática e, consequentemente, a tentativa de criação de um novo regime de verdade tecnopolítico, no qual o Brasil atuou através das plataformas digitais como uma espécie de vanguarda internacional conservadora tributária do neoliberalismo”, argumenta.
Ele diz que, no espectro do debate público dentro das democracias que, recentemente, optaram por governos de esquerda ou centro-esquerda (caso do Brasil), as forças progressistas terão que conviver com essa nova direita que saiu desse ciclo de manifestações.
Os embates recentes entre o governo do governo Lula, com suas propostas de avanço em pautas como meio ambiente, e o Congresso Nacional, majoritariamente de direita e extrema-direita, têm sido exemplo dessa herança de 2013.
Entenda o que foram as Jornadas de Junho de 2013
Cidadãos comuns se uniram em diversas manifestações pelo país a partir de junho de 2013. Tudo começou com passeatas pequenas e pontuais, reclamando sobre aumento do valor das passagens do transporte público. Mas, os protestos foram crescendo e começaram a incluir reivindicações que iam além das tarifas dos ônibus e metrô.
O povo levou para as ruas queixas que incluíam desde a carga de impostos, a qualidade dos serviços públicos, críticas aos gastos com a Copa do Mundo de 2014 (que iria, depois de 54 anos voltar a ocorrer no país-símbolo do futebol) e até demandas antidemocráticas pedindo por golpe militar.
Os protestos eram convocados por meio de redes sociais, que começavam a dar seus primeiros passos e a se popularizar.
As manifestações no Brasil vão seguindo uma tendência mundial de protestos, onde Facebook e Twitter foram ferramentas usadas para articular movimentos como a Primavera Árabe, os “indignados” na Espanha e o Occupy Wall Street nos Estados Unidos.
Houve cenas de depredação e vandalismo praticada pelos chamados black blocs, violência policial, conflitos e discussão entre os próprios manifestantes, além de tentativas de reação do governo da época, comandado pela presidente Dilma Roussef (PT) em busca de reeleição.
Também ficou marcado uma sensação coletiva de que o país caminhava para algo ainda impreciso.
Dentro desse clima, no Espírito Santo, a chamada “Passeata dos Cem Mil” ocupou toda a Reta da Penha, em Vitória, naquele 20 de junho, se unindo a manifestações populares registradas em diversas capitais.
Em Vitória, mais de 100 mil pessoas saíram em passeata segundo a Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp).
Os manifestantes saíram do campus de Goiabeiras, na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), pouco antes das 18h, e caminharam pela Reta da Penha até a Assembleia Legislativa e depois até o Tribunal de Justiça (TJ-ES).
Um outro grupo deixou a Universidade Vila Velha (UVV), atravessando a Terceira Ponte, que liga a cidade canela-verde à Vitória, e seguiu ao encontro dos demais manifestantes.
Eram inúmeras as pautas incluindo críticas ao gasto do Governo Federal com a Copa do Mundo de 2014, direitos LGBT, defesa do Estado laico (ou seja, política sem interferência de grupo religioso).
O então presidente do TJ-ES, Pedro Valls Feu Rosa, recebeu um grupo de manifestantes.
O protesto foi encerrado com atos de vandalismo na sede do TJ que foi depredada por uma minoria. O pedágio da Terceira Ponte teve cabines quebradas e queimadas. Lojas também foram saqueadas.
Depois da confusão, a Tropa de Choque da Polícia Militar dispersou o grupo com tiros de balas de borracha e gás lacrimogênio. Naquele dia, foram registradas passeatas em Cachoeiro de Itapemirim, Colatina, Guarapari, Iconha, São Mateus e Linhares.