*Artigo escrito por Gabriela Cuzzuol Ribeiro, analista política da Rede Vitória. Compõe a bancada do programa Visão Política, da Jovem Pan News, às terças e quintas, às 11h
Um dia de grave derrota para o setor produtivo brasileiro. Esta foi a marca do último 8 de fevereiro, quando o STF finalizou o julgamento sobre a cobrança retroativa de impostos após decisões transitadas em julgado – após as quais não cabem mais recursos.
Isso significa, na prática, que empresas que tiveram decisões favoráveis definitivas pelo não pagamento de alguns tributos podem ter de voltar a pagá-los, se a Suprema Corte decidir, em momento futuro, que os impostos são constitucionais.
O caso concreto diz respeito à análise de um recurso da União contra uma indústria têxtil que, em 1992, conseguiu uma decisão definitiva pela qual não precisou pagar o valor referente à Contribuição Social sobre Lucro Líquido. O que estava em questão não era a legalidade da cobrança do CSLL, tema já pacificado desde 2007, mas os limites da coisa julgada em matéria tributária.
O que causou perplexidade foi o resultado do julgamento de dois recursos extraordinários (RE 949.297 e RE 255.297). Os ministros negaram, por um apertado placar de 6X5 votos, o pedido de modulação de efeitos formulado pelos contribuintes. Se o tivessem concedido – optado pela modulação – a decisão só teria efeitos práticos a partir da publicação da ata de julgamento e os impostos só começariam a ser cobrados a partir de 2023.
Com a negativa – a opção pela não modulação – a cobrança poderá ser realizada retroativamente a 2007. E sem a necessidade de ação rescisória. A Receita Federal poderá acionar o contribuinte de forma automática, devendo somente respeitar os princípios da noventena e da anterioridade.
O primeiro – da noventena – determina que aumentos de certos impostos só podem ser aplicados após 90 dias, e o segundo – da anterioridade –, apenas no exercício seguinte ao da alteração.
Impacto Financeiro
A mudança de entendimento não afetará apenas a Têxtil Bezerra de Menezes, que participou do caso concreto. Só em relação à CSLL a nova deliberação deverá atingir 30 grandes grupos brasileiros. A lista inclui gigantes como GPA (dona do Pão de Açucar), Zürich, Embraer, Magnesita, Banco de Brasília, Vale e Havan. E será avassalador: o valor médio do CSLL é 9%, mas varia conforme a atividade específica (para bancos, por exemplo, chega a 20%).
A Embraer já divulgou previsão de prejuízos de até 1,6 bilhões de reais por ano. O Pão de Açucar estimou perdas anuais de 290 milhões. A Goldman e Sachs avalia que isso pode ter impacto negativo de entre 1,30 e 1,60 real por ação do grupo.
A Samarco, também anteriormente favorecida por decisões definitivas favoráveis, divulgou estimativa de perdas de 6,06 bilhões de reais, resultante de autuações da Receita Federal.
Pela complexidade do sistema tributário brasileiro, os efeitos da medida, porém, sobretudo em relação às bases de incidência e cobranças cumulativas, deverão atingir vários outros impostos. Por exemplo: a partir de 2020, passou a ser considerado constitucional cobrar COFINS de sociedades uniprofissionais (engenheiros, médicos, advogados etc..); em 2008, foi a vez do IPI (impostos sobre produtos industrializados) em produtos importados.
A Havan, por exemplo, possui decisão final que a isenta do pagamento de IPI. Embora alegue que apenas 5% de seu catálogo é composto por produtos importados, os porta-vozes da empresa já anunciaram perdas substanciais geradas por essa cobrança retroativa.
Segurança Jurídica
Especialistas alertam para a insegurança jurídica que a medida, se mantida, causará. Natasha Pinheiro, advogada tributarista do Castro, Barros, Sobral, Gomes Advogados analisou a questão conforme o entendimento majoritário entre advogados tributaristas:
“Quem ajuizou ação e tem decisão transitada na área tem de ter segurança jurídica de que o Judiciário assim entendeu e de que nada será alterado”, afirmou em entrevista ao site Brazil Journal em 8 de fevereiro,
Ou seja, quem tem decisão tributária definitiva confiou no Poder Judiciário e não se preparou – inclusive, financeiramente – para a possibilidade futura de revisão. A não modulação, ou seja, a “quebra” de decisões tributárias definitivas, possibilita que a confiança depositada no Poder Judiciário seja questionada.
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Relator de um dos recursos (o RE 949297 – Tema 881), o ministro Edson Fachin votou pela modulação dos efeitos de decisão “…considerando a segurança jurídica e a proteção dos contribuintes acobertados pela coisa julgada…”
Ricardo Lewandowiski acompanhou o voto do colega, confirmando a tese de que cidadãos que obtiveram decisões que transitaram em julgado confiaram no encerramento da questão pelo Poder Judiciário:
“Não é possível exigir agora, abruptamente, este entendimento por parte dos contribuintes”, afirmou em seu voto.
Relator do outro recurso analisado (o RE 955227 – Tema 885), o ministro Luís Roberto Barroso acredita a inviolabilidade do princípio da coisa julgada se mantém diante de contribuintes em situação de igualdade. E discordou sobre o risco de flexibilização da coisa julgada: “As empresas, como regra geral, deveriam estar provisionando ou depositando enquanto não se esclarecia. Quem não se preparou, fez uma aposta no escuro, e aí a gente assume os riscos das decisões que toma”, declarou em um vídeo divulgado pela TV Justiça.
O tema não é simples: de um lado, conforme alega Barroso, há a importância de garantir a isonomia econômica entre contribuintes, o que ficou prejudicado uma vez que, no passado uns foram beneficiados pela dispensa do pagamento de impostos, outros não. Do outro, a importância de se preservar a segurança jurídica, garantida pela inviolabilidade de uma sentença definitiva. Trata-se de princípio basilar do Direito, garantido pela constituição no artigo 5º, inciso XXXVVV, em que consta que “a lei não prejudicará a coisa julgada”.
Existe ainda a preocupação de que o novo entendimento possa impactar outras áreas além do Direito Tributário. O advogado Marcelo Guaritá, sócio do Peluso, Stupp e Guaritá Advogados chama a atenção para esta grave possibilidade: “Depois que um processo termina, passa por todas as instâncias, você tem uma decisão. O que está se discutindo é qual é o alcance disso, porque a decisão do Supremo é tributária, só que o fundamento dela é processual, ou seja, pode valer para outras coisas”, afirmou em entrevista ao Infomoney.
É importante avaliar os impactos no ambiente de negócios, no risco Brasil e em todos os critérios de avaliação fundamentais para os investimentos no país.
Imagine, por exemplo, uma filial brasileira reportando à matriz estrangeira que será necessário o pagamento de milhões em impostos retroativos, após a anulação do pagamento desses tributos por decisão transitada em jugado?
Este exemplo simplista pode auxiliar a entender o potencial da medida como um importante desestimulante aos investimentos no Brasil
É fundamental considerar que a decisão não atingirá apenas gigantes do setor, com condições de arcarem com a cobrança. O ônus da decisão também irá recair sobre empresas de diferentes portes e perfis. E, em última instância, o cidadão comum pagará a conta.
Motivação Política
A decisão é considerada como a primeira grande vitória do governo federal no STF, pois possibilitará que a União arrecade bilhões sem o desgaste do processo de criação de um novo tributo. Como afirmou o próprio ministro Luís Roberto Barroso a possibilidade de cobrança de impostos retroativa: “…equivale a um novo imposto”.
Embora o novo governo precise de dinheiro em caixa, a aprovação de um mais um tributo, diante do atual cenário, teria poucas chances de sucesso e geraria um desgaste para o novo governo federal. E tudo que Lula – que teve dificuldade de emplacar Haddad na Economia e ganhou a eleição com 50,9% dos votos válidos – não quer é desgaste de popularidade.
No início de fevereiro, o jornalista Kenedy Alencar confirmou diagnóstico semelhante ao de Henrique Meirelles na primeira quinzena de mandato: que “Lula 3” será bem diferente de “Lula 1”. O colunista da Folha, Bruno Boghossian acompanhou a análise, em coluna publicada em 11 de fevereiro. “Lula 3” está mais disposto a focar no social e bem pouco interessado em fazer concessões ao mercado. Lula 1 formou compromissos de controle fiscal e redução de gastos. O preço político foi alto. Encerrou o mandato com 28% dos brasileiros dizendo que a gestão era boa ou ótima.
A popularidade só voltou a “explodir” com o Bolsa Família e reeleição, já em 2006. Abastecido por um boom de commodities não faltou dinheiro para programas sociais. Venceu com 83%.
O ministério da Economia não conta mais com a figura de Paulo Guedes e sua pressão por austeridade.
Lula assumiu aprovando uma PEC de 145 bilhões e criticando Teto dos Gastos. Embora tenha conseguido maioria para eleger Rodrigo Pacheco à Presidência do Senado, em grande parte à custa de “créditos obtidos em virtude do temor Bolsonarista, após as depredações de 8 de janeiro”, tem consciência de que não tem uma base majoritária fiel.
Em reportagem de capa o jornal Folha de São Paulo, no dia 13 de fevereiro, esclarece que a base governista neste mandato é ainda mais infiel do que em anteriores.
O presidente realizou uma transição voltada para a base aliada, bem menor do que os 60 milhões de votos que o elegeram – muitos deles, de rejeição ao ex-Presidente Jair Bolsonaro – e impôs pessoas próximas para os ministérios importantes, como Aloizio Mercadante, contra boa parte do próprio PT, e até Fernando Haddad – enquanto o mercado queria Henrique Meirelles ou Pérsio Arida.
Diante disso – e da inexperiência de Haddad, sua aposta como sucessor político – o pacote de medidas econômicas apresentado pelo ministro – que prevê redução do déficit para menos de 1% através de 80% de aumento de arrecadação parece não convencer.
E ainda conta com medidas impopulares, como o fim da desoneração dos combustíveis, que eles têm segurado, mas não se sabe até quando.
A briga com o presidente do Banco Central, na semana passada, teve muito mais a ver com o Presidente deixando claro que “o tom de Lula 3” do que em si do que uma tentativa de destituir a autonomia da instituição.
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Quando Lula afirma que “não está certo manter a taxa de juros em 13,75%”, ele está sinalizando que não vai cortar despesas nem bancar (im)popularidade de 28% em início de mandato.
Diante deste cenário, o aumento de arrecadação que será gerado com a decisão da Suprema Corte será crucial não só para manter as contas públicas em dia, mas para garantir governabilidade.
Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, o Secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, confirmou, de forma discreta, a expectativa de aumento de arrecadação.
Alguns veículos de informação, como o Brazil Journal, levantam a suspeição de que os ministros do STF estivessem sendo pressionados para a aprovar a revisão do entendimento e assim, ajudar o governo a fechar as contas. Em artigo publicado em 8 de fevereiro, o jornal remontou a um julgamento realizado pela Suprema Corte em dezembro de 2022, que tratou desses dois temas.
Os juízes se posicionavam pela modulação, e o placar estava 6X0, quando um deles pediu um destaque – obrigando a transferência de votação para presencial. O resultado é o que se conhece.
Em teoria, um Poder não pode interferir em decisões do outro, para que se protejam direitos e liberdades individuais dos cidadãos a quem tem o dever de servir.
Na prática, não é o que ocorre. O nível de harmonia entre os poderes influencia sim, muito mais do que deveria nas tomadas de decisões dos três Poderes. De maneira sutil e nunca pública.
Em meio ao (des)equilíbrio de forças que os Três Poderes utilizam para se manterem no Poder, a calamidade tributária brasileira vitimiza a atividade produtiva e impacta o cidadão que dela depende. A Reforma se faz urgente.
Se o Brasil já vinha sendo prejudicado por ser o país em que, algumas vezes, mudam-se as regras no meio do jogo, pode passar a ser a nação em que decisões dos árbitros deixam de se basear nas regras para se tornarem mais importantes do que elas”.
Só que este é o jogo que ninguém quer jogar.
*Artigo escrito por Gabriela Cuzzuol Ribeiro, analista política da Rede Vitória. Compõe a bancada do programa Visão Política, da Jovem Pan News, às terças e quintas, às 11h