
*Artigo escrito por Teuller Pimenta Moraes, advogado, jurídico interno da empresa Ghisolfi Logística e Transporte e membro do Comitê Especial de Tributação Empresarial do Ibef-ES e do Ibef Academy.
Recentemente, as cientistas Ana Bonassa e Laura Marise, do canal do Youtube “Nunca Vi 1 Cientista”, enfrentaram um caso emblemático ao desmentirem uma alegação de que diabetes seria causada por vermes, uma informação sem base científica, promovida por um nutricionista que vendia tratamentos alternativos. Elas foram processadas e condenadas a indenizar, por danos morais, André Luis Lanza.
O absurdo mencionado traz à tona um debate essencial que exige atenção crescente: até que ponto a Justiça deve proteger a disseminação de mentiras e, em contrapartida, como assegurar a liberdade de expressão?
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Ao expor os riscos da informação divulgada sobre as causas do diabetes, Ana Bonassa e Laura Marise foram condenadas por danos morais pela Justiça de São Paulo com base no argumento de que teriam causado “vergonha e tristeza” ao autor, uma vez que usaram prints do perfil público do nutricionista.
Para além do jurídico, essa condenação levanta o debate sobre os limites entre o direito à liberdade de expressão, principalmente quando o objetivo é informar corretamente a população.
Cientistas e comunicadores da ciência têm um papel essencial em alertar a sociedade para práticas perigosas e inverdades que, se disseminadas, podem levar a danos reais.
No caso da diabetes, uma doença complexa e de alta incidência, a propagação de tratamentos falsos não apenas coloca vidas em risco, mas também ameaça a credibilidade de práticas e pesquisas fundamentadas. As cientistas, ao exporem a falsa cura para a diabetes, cumpriram seu papel ao orientar o público sobre os riscos.
Liberdade e direito de imagem
O caso também coloca em evidência a relação entre liberdade de expressão e o direito à imagem. Por um lado, o direito à imagem protege o indivíduo contra ataques pessoais, mas, por outro, a liberdade de expressão é um princípio democrático que sustenta o debate aberto, especialmente em temas que envolvem o interesse público.
Neste caso, o conteúdo exposto tinha, claramente, um viés educacional e preventivo. A intenção das cientistas não era denegrir a imagem de ninguém, mas evitar que a desinformação ganhasse espaço.
Inclusive, no vídeo da dupla de divulgadoras, Bonassa mostrava que diabetes não tem relação com vermes:
É um problema na ação e na quantidade de insulina, ou até ambos. E a consequência é o aumento do açúcar no sangue. Isso causa uma série de problemas, como amputações de membros, cegueira, doença nos rins, problema no coração e pode levar à morte. E o que causa isso? São vários fatores, desde a sua genética até o seu estilo de vida. Mas nenhum desses fatores é verme.
Em resposta ao caso, a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), juntamente com a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica e o Conselho Federal de Nutrição divulgaram uma nota de esclarecimento.
As entidades enfatizaram que o diabetes é uma condição clínica crônica e sem cura, frequentemente acompanhada de complicações que afetam a saúde e a qualidade de vida.
Por isso, destacam a importância de que as pessoas com diabetes estejam engajadas no tratamento adequado e informadas sobre a seriedade da condição, reforçando a necessidade de combater a desinformação sobre o tema.
STF suspendeu a condenação
Felizmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a condenação, reconhecendo a importância de garantir a proteção aos divulgadores científicos em casos em que há clara defesa da saúde pública e do conhecimento.
Ao analisar o recurso, o ministro Dias Toffoli afirmou que as declarações da bióloga e da farmacêutica estão baseadas em dados científicos:
“Tem-se manifestação de pensamento crítico à atuação de perfil público e de teorização fundada tanto em fatos como em dados científicos acerca da diabetes, bem como afirmação veemente de que diabetes não é causada por verme e de que essa desinformação é utilizada para vender um produto denominado protocolo de desparasitação e, portanto, deve ser denunciada.”
Essa decisão foi essencial para reafirmar o papel da ciência e da liberdade de expressão na sociedade, garantindo que cientistas e comunicadores possam agir sem medo de retaliação ao corrigirem desinformações.
Liberdade de expressão
O caso das cientistas Ana Bonassa e Laura Marise reflete uma questão central para o futuro do conhecimento e da liberdade de expressão. Em relação às fake news, é essencial reconhecer o direito do povo ao exercício da livre circulação de fatos, ideias e opiniões, independentemente de seu teor crítico.
A liberdade de expressão assume o papel de direito fundamental prioritário, consagrado explicitamente em diversas democracias, incluindo a brasileira.
No entanto, enquanto por um lado não se deva calar nenhuma pessoa, por outro não se deve condenar aquele que desmente, cientificamente, a informação falsa.
Nesse contexto, deve-se considerar a legitimidade de uma teoria de liberdade de expressão que atribua às autoridades científicas um compromisso maior com a veracidade e precisão do que o exigido de cidadãos comuns.
Tal abordagem reconheceria um dever democrático de fundamentar suas declarações e ações em informações técnicas e metodologicamente consistentes, assegurando que o discurso seja informado e confiável.
Portanto, o que se está a defender é que a produção e disseminação de conhecimento técnico confiável são essenciais para a legitimidade da democracia e o desenvolvimento social.
As sociedades modernas têm suas direções amplamente moldadas pelo saber técnico e científico, o que torna indispensável uma base sólida de informações verificáveis para fundamentar as decisões públicas e a participação cidadã.
Não se cale o mentiroso, mas, ao mesmo tempo, é preciso garantir que o conhecimento científico não seja ultrajado. Para se atestar o pleno exercício da liberdade de expressão e a definição dos rumos de uma sociedade democrática, é fundamental promover um debate que valorize os fatos e o conhecimento comprovado.
Este texto expressa a opinião do autor e não traduz, necessariamente, a opinião do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Espírito Santo.