A mudança do clima já está causando danos à saúde das crianças em todo o mundo e deve impactar o bem-estar de uma geração inteira se não atingirmos as metas do Acordo de Paris para conter o aquecimento global em níveis bem abaixo dos 2oC, aponta um novo relatório publicado pela revista médica The Lancet.
“No passado, o Brasil era reconhecido como líder mundial no combate à destruição ambiental. Hoje, o progresso observado no país é limitado e os danos extensos à saúde causados pela mudança do clima estão ocorrendo mais rápido do que o governo é capaz ou está disposto a responder”, diz Mayara Floss, médica residente de atenção familiar em Porto Alegre (RS).
“Secas longas, chuvas excessivas e incêndios descontrolados estão aumentando a pressão sobre a saúde. Impulsionado em parte pela mudança do clima, o aumento contínuo da dengue pode logo se tornar incontrolável, com as incidências triplicando desde 2014. Lamentavelmente, o desmatamento de florestas maduras está aumentando novamente e o uso do carvão está crescendo. Não devemos desperdiçar o sucesso que obtivemos no passado com tanto custo nessa área”.
Para que o mundo atinja seus objetivos climáticos e proteja a saúde das próximas gerações, o panorama energético global precisa mudar drasticamente e o quanto antes, alerta o relatório. Nada menos do que um corte anual de 7,4% nas emissões de CO2 entre 2019 e 2050 limitará o aquecimento global à meta mais ambiciosa de 1,5oC.
Destaques sobre o Brasil
• À medida que a temperatura sobe, as crianças sofrerão o maior impacto em termos de desnutrição e elevação no preço dos alimentos – o potencial de rendimento médio da soja diminuiu quase 4% no Brasil desde os anos 1960.
• As crianças serão as que mais sofrerão com o aumento de doenças infecciosas – a capacidade de apenas um tipo de mosquito de transmitir dengue no Brasil aumentou 11% desde a década de 1950, como resultado da mudança do clima.
• Ao longo da adolescência, o impacto da poluição do ar pode piorar – a oferta total de energia proveniente do carvão triplicou no Brasil nos últimos 40 anos; e níveis perigosos de poluição do ar externo (PM2,5) contribuíram para 24 mil mortes prematuras em 2016.
• Eventos climáticos extremos se intensificarão na vida adulta, com o Brasil tendo cerca de 1,6 milhão de pessoas a mais expostas a incêndios desde 2001-2004.
Impactos na saúde ao longo da vida no cenário business-as-usual
Se continuarmos seguindo o caminho do business-as-usual, com altas emissões de carbono, e a mudança do clima continuar no ritmo atual, uma criança nascida hoje enfrentará um mundo em média 4ºC mais quente no seu 71º aniversário, ameaçando sua saúde em todas as fases de sua vida.
“As crianças são particularmente mais vulneráveis a riscos de saúde em um planeta com o clima sob transformação. Seus organismos e sistemas imunológicos ainda estão se desenvolvendo, deixando-as mais suscetíveis a doenças e poluentes ambientais”, explica Dr. Nick Watts, diretor-executivo do The Lancet Countdown. “O dano ocorrido no começo da infância é persistente e pervasivo, com consequências para a saúde que duram a vida toda. Se não tomarmos medidas imediatas em todos os países para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, os ganhos que tivemos recentemente com bem estar e expectativa de vida podem ser comprometidos, e a mudança do clima pode definir a saúde de uma geração inteira”.
O impacto de epidemias perigosas será mais mortal nas crianças
As crianças serão particularmente suscetíveis às doenças infecciosas que se intensificarão nos próximos anos por causa da mudança do clima. Nos últimos 30 anos, o número de dias climaticamente suscetíveis à bactéria Vibrio (que causa muitas das doenças de diarreia no mundo) dobraram.
De modo similar, as mudanças nos padrões climáticos estão criando ambientes favoráveis à bactéria Vibrio cholerae, sendo que a incidência dela aumentou quase 10% desde os anos 1980, o que eleva a probabilidade de surtos de cólera em países onde a doença não ocorre regularmente.
Estimulada pela mudança do clima, a dengue é a doença viral transmitida por mosquito que mais se dissemina no mundo hoje. Nove dos 10 anos com maior ocorrência dessa doença aconteceram depois de 2000. Cerca de metade da população global vive hoje em áreas suscetíveis à dengue.
A qualidade do ar vai piorar, o que causará mais danos à saúde cardíaca e pulmonar
Desde a adolescência até a vida adulta, uma criança nascida hoje irá respirar mais ar tóxico, causado pela queima de combustível fóssil e piorado pelas temperaturas em alta. Isso é especialmente danoso para os mais jovens, já que seus pulmões ainda estão em desenvolvimento, o que amplia o dano gerado pelo ar poluído e causando redução das funções pulmonares, piorando a asma, e elevando o risco de ataques cardíacos e derrames.
Na medida em que as emissões globais de CO2 decorrentes da queima de combustíveis fósseis continuam aumentando (alta de 2,6% entre 2016 e 2018), o suprimento energético fornecido pelo carvão está crescendo (alta de 1,7% no mesmo período), o que reverteu uma tendência anterior de queda no uso desse material. As mortes prematuras relacionadas com material particulado PM 2,5 permanecem estagnadas em 2,9 milhões em todo o mundo. O carvão contribuiu para mais de 440 mil mortes prematuras por PM 2,5 em 2016, e provavelmente mais de 1 milhão de mortes se considerados todos os tipos de poluentes.
Isto pode ser apenas a ponta do iceberg, dizem especialistas. Se a Europa experimentar contaminação por PM 2,5 nos níveis de 2016 ao longo da vida inteira da atual população, as perdas econômicas e os custos de saúde de doenças relacionadas a poluição do ar, bem como as mortes prematuras causadas por ela, pode chegar a € 129 bilhões por ano.