Reportagem especial

De Ozempic a paracetamol: o que você precisa saber sobre medicamento falsificado

Nos últimos anos, a venda de medicamentos falsificados tem se tornado uma das maiores ameaças à saúde pública mundial. Entenda por que e como se prevenir

Ana Carolina Monteiro

Redação Folha Vitória
Foto: Reprodução/Freepik

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) chamam a atenção para uma estimativa alarmante: um em cada 10 produtos médicos em circulação em países de baixa e média renda são falsificados ou de baixa qualidade. 

Ainda de acordo com o levantamento, isso representa um custo de 38,5 milhões de euros (em média) em tratamentos adicionais para pacientes e prestadores de serviços de saúde, em decorrência do fracasso do tratamento. 

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Em julho deste ano, a acadêmica de Direito, Emily Fonseca Freitas, recorreu a uma medicação "natural" com promessas de emagrecimento. Ao subir na balança, pouco mais de um mês após o início dos comprimidos, constatou que havia perdido 10kg. Foi quando acendeu o primeiro sinal de alerta.

"Eu tive alteração nos meus batimentos cardíacos e pressão alta. De bate-pronto eu busquei uma cardiologista por que eu acreditei que podia estar ali o problema. Fiz uns exames com ela e os resultados foram todos normais. Procurei uma endocrinologista e conseguimos fechar um diagnóstico. Algo não estava bem com a minha tireoide", conta.
Foto: Thiago Soares/Folha Vitória
Hoje, Emily diz estar mais atenta a saúde

Segundo especialistas, nenhum alimento, composto ou medicação usados isoladamente são capazes de emagrecer de forma saudável. 

E foi exatamente no consultório, ao relatar a perda de peso rápida, que a especialista desconfiou do composto que Emily estava ingerindo.

"Meus exames de sangue apresentaram uma baixa drástica de muitas vitaminas no organismo. O susto mesmo veio com a alteração na tireóide. A endócrino, então, desconfiou que aquele medicamento, supostamente natural, pudesse estar com algum outro tipo de composto e não somente aqueles que constavam no rótulo."

A acadêmica lembra ainda que a médica descartou relação com os outros medicamentos que utiliza, já que são registrados pela Anvisa.

Passado o susto inicial, foi iniciado um protocolo para tratar as deficiências  vitamínicas e restaurar a função normal da tireoide

A glândula, situada na parte anterior do pescoço, é responsável pela produção dos hormônios T3 e T4 que regulam o metabolismo da formação fetal até as idades mais avançadas. 

"Depois desse episódio, eu comecei a me cuidar bem mais. Tentar recuperar e melhorar as minhas taxas. Continuo fazendo acompanhamento com a endócrino e também com uma nutricionista". 

Segundo ela, os profissionais ideais na condução processo de um emagrecimento  saudável.

Imunoglobulinas e antidiabéticos na lista dos mais falsificados

Criada em 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi instituída após uma série de denúncias envolvendo medicamentos falsificados. Para se ter uma ideia, entre 1997 e 1998, o Ministério da Saúde recebeu notificações de cerca de 170 casos de medicamentos falsificados no Brasil. 

Desde então, entre as medidas que passaram a inibir novas ocorrências é que a falsificação de medicamentos passou a ser considerada crime hediondo.

"A fiscalização se dá de forma passiva (mediante o recebimento de denúncias) ou de forma ativa (mediante a identificação no mercado de unidades falsificadas). Durante a investigação, o objetivo é confirmar a falsificação, adotar medidas para reduzir o risco à população à exposição a estes produtos, comunicar adequadamente o risco e identificar os responsáveis. As determinações de apreensão e proibição são sempre feitas quando da confirmação de unidades falsificadas no mercado, no âmbito da investigação", explicou a Agência.
Foto: Reprodução

No último mês de outubro, as falsificações do remédio Ozempic, antidiabético usado off label (prescrito com finalidade diferente da descrita na bula) para emagrecimento, repercutiram após uma mulher ser hospitalizada ao fazer uso do produto. 

A paciente teve alta no dia seguinte e a polícia foi até o local onde ela havia comprado o medicamento. Três caixas do remédio falsificado acabaram apreendidas.

A Novo Nordisk, farmacêutica responsável pela produção do medicamento, fez uma alerta relacionado a existência de exemplares falsos do remédio sendo comercializados ilegalmente. Para ajudar a população divulgou modos de identificar o medicamento original. 

O Ozempic original tem a cor da caneta aplicadora azul-claro e o botão de aplicação cinza. Atenção especial para embalagens alteradas ou rasuradas que venham em idioma estrangeiro e tragam informações incorretas sobre o produto. "

O medicamento pode ser encontrado no Brasil nas versões de 0,25 mg, 0,5 mg e 1 mg, apenas. 

*MEDICAMENTOS MAIS FALSIFICADOS

- Anabolizantes;
- Imunoglobulinas;
- Antidiabéticos utilizados para emagrecimento;
- Toxinas botulínicas;
- Medicamentos de alto custo, incluindo aqueles destinados para o tratamento contra o câncer.

Em 2024, 71 dossiês de fiscalização foram abertos pela Anvisa

A reportagem questionou a Anvisa se foi identificado um aumento no número de medicamentos falsificados (2023/2024). Segundo a agência, como não é possível estimar ao certo a quantidade de produtos falsificados em circulação no mercado, não há como afirmar se houve aumento ou diminuição.

"O aumento ou diminuição do número de denúncias não necessariamente reflete essa informação, e está mais associada à capacidade ou não de identificação das falsificações", pontuou.

Porém, em consulta aos bancos de dados da própria Anvisa, constata-se que em 2023 foram abertos 41 dossiês de fiscalização para investigar casos de suspeita de falsificação de medicamentos. Já em 2024, até o momento, foram abertos 71 dossiês com a mesma finalidade. 

Ainda no ano passado, a agência lembra que foram publicadas 18 medidas restritivas (Resoluções Específicas - RE), com casos confirmados de falsificação de medicamentos no país. De janeiro deste ano até o momento, foram publicadas 19 RE com esta finalidade. 

Foto: Divulgação/Anvisa
Tysabri é indicado para o tratamento de esclerose múltipla: falsificação foi identificada pela Anvisa em 2023 - Lote: FF00336, válido até 2026. As imagens são de caixas dos medicamentos falsificados 

No início de novembro de 2023, a Anvisa fez um alerta sobre lotes falsificados dos medicamentos Tysabri® (natalizumabe) - utilizado para tratamento de esclerose múltipla.

Em um comunicado feito então a agência, a farmacêutica Biogen, que detém o registro do medicamento, informou que o lote em questão foi produzido somente para fins institucionais, e não comerciais. Entre as diferenças que demonstram a falsificação estão: erros de ortografia, diferença de cores nas faixas vermelhas e laranjas, além da formatação das letras.

Na mesma ocasião, a agência também recebeu um comunicado da Novo Nordisk, empresa responsável pelo Ozempic® (semaglutida), sobre a presença de unidades do lote LP6F832, válido até 11/2025, no mercado brasileiro. 

Na publicação feita no site oficial da Anvisa na época consta o alerta de que "o lote não é considerado válido pela empresa e se trata, portanto, de produto falsificado". 

"Isso não é de agora, é de algum tempo que a gente observa esse tipo de situação. Muitas vezes o Conselho de Farmácia recebe as denúncias e como não é o órgão que tenha essa competência, ele vai acionar os órgãos competentes como a Polícia Civil, a Polícia Federal, as Vigilâncias Sanitárias municipais e estadual e até mesmo a Anvisa pra que possam fazer uma operação", explica Rodrigo Alves do Carmo, conselheiro Federal pelo CRF-ES, farmacêutico e professor universitário.

Essas operações costumam acontecer em conjunto com o Conselho. Rodrigo lembra de um caso de 2017 que aconteceu em Vila Velha. 

"O conselho recebeu a denúncia e acionou a Polícia Civil e foi a Vigilância também e identificaram um local onde estavam sendo produzidos medicamentos de forma inadequada. Ali tinha um estoque enorme totalmente sem condições de higiene, condições precárias, sem o controle de qualidade, sem um responsável técnico, sem nada, colocando em risco a população", lembra.  

Toneladas de medicamentos apreendidos em Vila Velha

Foto: Divulgação/Defa - Arte: Folha Vitória
Fotos de apreensão feitas pela Defa/PCES, em 2017; toneladas de medicamentos falsificados apreendidos

A história relatada pelo conselheiro aconteceu no dia 28 de março de 2017, quando a equipe da Delegacia de Defraudações e Falsificações (Defa), que na época era comandada pela delegada Rhaiana Bremenkamp. Uma operação apreendeu cerca de três toneladas de medicamentos, entre remédios e suplementos falsificados.

A ação aconteceu no bairro Divino Espírito Santo, em Vila Velha, Espírito Santo. A polícia chegou ao local por meio de informações recebidas pelo Disque-Denúncia (181). 

Foto: Divulgação/Defa-ES
Medicamentos falsificados apreendidos pela PCES

No endereço, os policiais constataram que se tratava de uma espécie de laboratório clandestino com uma quantidade enorme de frascos, medicamentos, cápsulas e produtos. 

Na ocasião, a delegada disse que os produtos abasteciam lojas de academias, além de estabelecimentos comerciais na Vila Rubim. 

Um homem de 31 anos que teve apenas as inicias do nome divulgadas, foi apontado como o responsável pelo local. “Ele confessou que fabricava e vendia os produtos sem autorização e registro da Vigilância Sanitária”, informou a delegada na época da operação. R.B.R foi autuado por falsificação de produtos medicinais e terapêuticos.

"Operação Autoimune" x importação de medicamentos falsos

Em novembro de 2022, a Anvisa e a Polícia Federal deflagraram a "Operação Autoimune". Foram cumpridos mandados no Espírito Santo e em outros cinco estados. A operação desarticulou um esquema de importação e comercialização de medicamentos falsos. Os mandados foram expedidos pela 7ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Mato Grosso (SJMT).

Segundo a Polícia Federal, as investigações tiveram início após a apreensão de várias caixas de medicamento com o princípio ativo “neostigmina” no Aeroporto Internacional de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul.

Foto: Reprodução/Freepik @ASphotofamily

As caixas de remédios vindas da Argentina estavam sem a documentação que comprovassem a entrada regular no território brasileiro.

O esquema, de acordo com a polícia, era praticado em 65 municípios brasileiros de 16 estados e do Distrito Federal. O grupo teria movimentado, em dez meses, cerca de R$ 4 milhões.

Na operação foi apreendida uma caixa do medicamento imunoglobulina com origem argentina e comprovadamente falsificado. A imunoglobulina é usada para tratar infecções desencadeadas por bactérias ou vírus, imunodeficiências, doenças neuroimunológicas, além de condições autoimunes/inflamatórias.

Remédio falsificado: como reconhecer e o que fazer

Os medicamentos falsificados, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), em casos extremos, podem causar graves danos à saúde. Além disso, há o risco de piorar as condições em tratamento devido aos componentes prejudiciais que podem estar contidos neles.

Você deve, então, estar se perguntando: o que fazer para evitar ser vítima de uma situação como essa? E o pior: quais os riscos para a saúde de quem consome um medicamento falso?

Foto: Ana Carolina Monteiro/Folha Vitória
Rodrigo Alves do Carmo é Conselheiro Federal pelo CRF-ES, farmacêutico e professor universitário  

Segundo Rodrigo Alves do Carmo, farmacêutico e Conselheiro Federal pelo Conselho Regional de Farmácia (CRF-ES), é preciso muito cuidado. 

Um medicamento falsificado pode só não fazer efeito como até mesmo, em situações mais severas, diante de uma falta de padronização dos princípios ativos, expor o paciente à altas dosagens, provocando sérias consequências à saúde, com a intoxicação, por exemplo.

É importante destacar que a produção de um medicamento não é algo simples. É algo bem complexo. Quem pode produzir medicamentos? 

Farmácia com manipulação, indústrias farmacêuticas e indústrias de suplementos, por exemplo. Lembrando que medicamentos e suplementos têm categorias diferentes, porém, casos envolvendo falsificação de suplementos, vêm se tornado recorrentes. 

"Essas empresas precisam seguir normas e são normas bem rigorosas. São normas sanitárias que vão desde o controle de qualidade da matéria-prima que chega, passando por controles de temperatura da matéria-prima estocada, controle de microbiológico, de pragas, controle de qualidade na produção para garantir que aquele produto está saindo com a qualidade necessária".

O especialista diz ainda que, no caso específico de medicamentos, é preciso haver um farmacêutico responsável pelo processo de produção, cada produto tem que ter um registro na Anvisa, entre outros pontos. 

Todos os critérios são estabelecidos pela Anvisa e cada produto - fitoterápicos, medicamentos, droga vegetal, suplemento alimentar - cada um deve apresentar e seguir rigorosamente as normas determinadas pelo órgão.

COMO EVITAR A COMPRA DE MEDICAMENTOS FALSIFICADOS

Entre as orientações para não ser vítima de remédios falsificados, a principal é comprar os que forem prescritos pelo médico somente em drogarias e farmácias de confiança.

Nos sites, priorizar os dos próprios fabricantes, das farmácias e no e-commerce, que seja possível checar o endereço e identificar questões de confiabilidade do site em questão.

"Segundo ponto é, assim que receber o produto, verificar a embalagem, a integridade da embalagem, ver se não tem um lacre que foi rompido. NA embalagem secundária, que é o frasco propriamente dito, se ele preserva o lacre, se tem lote, data de validade, data de fabricação", alerta Rodrigo. 
Foto: xb100/Freepik
É importante estar atento a todas as informações que constam no rótulo dos medicamentos

A Anvisa alerta para o fato da identificação de um medicamento falsificado ser mais complexa. Porém, lista alguns elementos que são indicativos de falsificação. Veja:

1) Erros de português na embalagem;
2) Falhas na impressão das informações (informações mal impressas, informações apagadas, ilegíveis);
3) Diferenças nas datas de fabricação e validade e no número do lote entre a embalagem primária (ampola, blister, frasco) e a embalagem secundária (caixinha de papel);
4) Raspadinha que não aparece a logo da empresa;
5) Ausência de lacre de segurança ou falha na colagem da embalagem secundária.

A agência destaca que também é preciso suspeitar em casos de medicamentos que são recebidos fora da embalagem original, uma vez que "todos os medicamentos são fornecidos dentro de caixinhas de papel (embalagem secundária)".

Outro ponto importante é desconfiar de medicamentos comercializados em mercados, marketplaces e lanchonetes.

"Sites em geral e marketplaces, vendedores ambulantes, carros de som ou outros estabelecimentos não podem comercializar medicamentos e, por isso, os medicamentos comercializados nestes locais têm procedência incerta, ou seja, não é possível saber a sua origem, podendo se tratar, inclusive, de produto falsificado", destaca a Anvisa.

VÍDEO | SAIBA IDENTIFICAR EM CASA SE A CREATINA É ´PURA OU FALSA

Nos últimos anos a crescente procura pelos suplementos alimentares tem desencadeado uma onda de produtos falsificados. Um relatório divulgado pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais e Congêneres (Abiad), aponta que o setor registrou um crescimento do consumo aparente em 13,0% (2018-2023).

Foto: Ana Carolina Monteiro/Folha Vitória
Teste do Iôdo: como saber se creatina é falsificada ou não
"No caso da creatina, eles adicionam amido para render, adulterar, daí misturam farinha e a olho nu você não tem como identificar o que é creatina e o que é farinha", disse Rodrigo. 

De um lado, o aumento da procura. Do outro, o mercado clandestino de produtos falsificados ávido por ganhar dinheiro ilegalmente. Então, o que fazer, nesse caso, para evitar comprar "gato por lebre"? Um teste simples, usando tintura de iôdo pode ajudar você a não ser enganado.

No vídeo, Rodrigo mostra na prática o que e como deve ser feito.

*Assista e saiba como fazer o teste: