A Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa, negou o pedido da importação da vacina russa Sputnik V, na última segunda-feira (26). A justificativa foi a possibilidade de o imunizante causar a replicação de um adenovírus no corpo humano. Mas, afinal, o que isso significa?
O infectologista Gonzalo Vecina, fundador e ex-diretor presidente da Anvisa, explicou: “a vacina introduz um pedaço do SARS-CoV-2 em nosso corpo para que ele produza uma reação. No caso da russa, foi pego o vírus de resfriado, um adenovírus, e foram atenuadas as características dele, de tal forma que ele não possa se multiplicar. A partir daí, foi colocado um pedaço da proteína S [responsável pela entrada do coronavírus na célula humana] para que o corpo reaja”, explicou Vecina.
E completou: “Após a aplicação da vacina, o vírus entra no nosso corpo. A expectativa é que ele seja destruído e libere a proteína S. Assim, começamos desenvolver a imunidade contra o SARS-CoV-2. O problema é que parece que na Sputnik, ele não está sendo destruído e começou a se multiplicar no organismo humano”, alerta o médico.
Leia Também: Butanvac: o que já sabemos sobre a vacina brasileira que o governo do ES quer comprar
O que esse problema pode causar nas pessoas?
De acordo com Renato Kfouri, diretor da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunização), não é possível dizer com certeza quais seriam os efeitos que a replicação do adenovírus causariam nas pessoas.
“Não é possível prever o que pode acontecer. Nunca tivemos um desvio desses com uma vacina produzida em quantidade tão alta. De acordo com a Anvisa, é um desvio já previsto no dossiê enviado para aprovação da vacina. Talvez seja só um dado de margem de segurança”, afirmou Kfouri.
Se confirmado, a vacina pode ser aplicada?
O Gerente de Medicamentos e Produtos Biológicos da Anvisa, Gustavo Mendes, disse que o Instituto Gamaleya, criador da Sputnik V, não forneceu dados científicos sobre a possível multiplicação dos vírus.
“Precisamos saber se existe mesmo um vírus replicante que não é esperado na Sputnik. Qual é o risco de ter esse vírus? Esse vírus pode se acumular em algum órgão? Pode gerar um efeito tóxico? Pode gerar uma adenovirose? Pode ser transmitido para outras pessoas?”, explicou Mendes em audiência pública na Câmara dos Deputados.
A preocupação é legítima, já que a replicação do vírus indica que o imunizante não pode ser usado.
“Se o vírus resfriado consegue dar ordem para o nosso corpo para ele se multiplicar, a vacina está condenada”, alerta o fundador da Anvisa.
O que significa a vacina apresentar impurezas?
No comunicado com as explicações sobre a recusa da importação, a Anvisa avisou: “Foram detectados estudos de caracterização inadequados da vacina, inclusive com relação à análise de impurezas e de vírus contaminantes durante o processo de fabricação, além de ausência de validação/qualificação de métodos de controle de qualidade.”
O médico da SBIm lembra que todo processo de fabricação requer um controle de qualidade rígido.
“É esperado que a vacina não tenha impureza, material de outros vírus, antibióticos, conservantes, ou qualquer outro produto que não seja a vacina. É importante que o produto esteja dentro dos critérios de boas práticas não só dos estudos feitos, mas de fabricação também. Para isso, a Anvisa teria que visitar a fábrica onde seriam produzido o lote de seria importado para o Brasil”, salienta Renato Kfouri.
Faltam informações sobre lote que seria vendido ao Brasil
A agência brasileira informou que o Instituto Gamaleya não apresentou dados de estudos comparando o lote de 5 litros usado nos testes clínicos, com o lote de 1.000 litros que seria vendido para o Brasil.
“Sem os comparativos, como vamos saber, se essa vacina que está sendo aplicada a partir da produção de mil litros vai apresentar os mesmos dados reportados nos estudos publicados na revista científica The Lancet?”, perguntou Gustavo Mendes.
Angela Rasmussen afirmou que a Eslováquia, onde a vacina é usada, chegou a rejeitar um lote por ser diferente do usado nos estudos publicados.
“O regulador de medicamentos da Eslováquia rejeitou anteriormente um lote de Sputnik V por ser substancialmente diferente dos lotes relatados na Lancet. A EMA (agência reguladora europeia) também disse que não tem dados de segurança e de controle de qualidade suficientes para autorizar a vacina na União Europeia”, publicou em sua conta na rede social.
Por que outros países usam e o Brasil não?
A Anvisa está sendo cobrada uma vez o produto russo é usado em 62 países e, até o momento, ninguém alertou sobre o possível adenovírus replicante.
Gonzalo Vecina explica que o órgão regulador do Brasil segue orientações do pelo Conselho Internacional para Harmonização de Requisitos Técnicos de Medicamentos para Uso Humano (International Council for Harmonisation of Technical Requirements for Pharmaceuticals for Human Use – ICH).
“Tem 32 países que fizeram um clube de agências de vigilâncias sanitárias, países europeus, os Estados Unidos, a Nova Zelândia, o Japão, e o Brasil faz parte desse grupo. Todos esses países seguem as mesmas exigências e, aí, tem o resto do mundo. Lá está a Agência da Argentina, que nos últimos 30 anos passou por mudanças, e parece que baixaram a guarda”, argumenta Vecina.
Ainda é possível autorizar a Sputnik no Brasil?
Ainda tramita na Anvisa um pedido de importação feito por outros estados que desejam comprar o imunizante e uma requisição de uso emergencial, feito pela União Química.
A farmacêutica brasileira, que produziria a vacina por aqui, precisa enviar mais documentos para análise da Anvisa.
O médico Renato Kfouri acredita que tem de partir dos fabricantes o interesse de vender ou não a vacina para o Brasil.
“Não cabe a nós desistirmos ou queremos a vacina. Se eu tenho um produto que quero vender para determinado país, preciso obedecer as regras do país que quero vender. Então, é uma demanda do produtor. Se eles de fato quiserem trazer para cá, eles responderão as dúvidas da Anvisa”, observa Kfouri.
O sanitarista Gonzalo Vecina acha que é possível esperar a resposta dos russos, mas o Brasil tem de procurar outros imunizantes.
“Precisamos acelerar as vacinações, então, temos de encontrar formas de viabilizar doses de outras farmacêuticas, além de dar mais uma chance para ver se os russos apresentam os documentos pedidos”, finaliza o fundador da Anvisa.
*Com informações do Portal R7