ENTREVISTA

"Empresas devem dar condições ao contratarem pessoas com deficiência", diz procuradora

Fernanda Barreto Naves, porta-voz do Reconecta, afirma que contratantes devem promover a oferta de salários e benefícios justos e eliminar as barreiras existentes

Erika Santos

Redação Folha Vitória
Foto: AL Consultoria

Pessoas com deficiência enfrentam desafios diários para se inserirem no mercado de trabalho. Muitas vezes, as empresas oferecem vagas de emprego, mas nem todas estão preparadas para oferecer as condições necessárias para que esses funcionários exerçam suas funções com dignidade e realização.

Nesta entrevista ao Folha Vitória, a procuradora do Ministério Público do Trabalho no Espírito Santo, Fernanda Barreto Naves, explica como as empresas podem cumprir sua função social e o dever de inclusão pelo trabalho.

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Vice-coordenadora nacional da Coordigualdade do MPT (Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho) e coordenadora regional da Coordigualdade do MPT/ES, Fernanda é porta-voz do Reconecta, evento que tem como objetivo promover a inclusão para pessoas com deficiência (PcD) no Espírito Santo.

O Reconecta será realizado entre os dias 4 e 7 de dezembro, no Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região, na Enseada do Suá, em Vitória. 

Além de palestras e agendas culturais para toda a família, o Balcão de Empregos estará aberto para promover a inclusão também no mercado de trabalho. Mais de 680 vagas de emprego para pessoas com deficiência deverão ser disponibilizadas.

Confira o que a procuradora fala sobre dificuldades enfrentadas pelas empresas para contração, salários pagos e o que diz a lei sobre isso.

Folha Vitória – Qual é a maior dificuldade alegada pelas empresas para a contratação de pessoas com deficiência? 

Fernanda Barreto Naves – Grande parte das empresas alega dificuldade em encontrar pessoas com deficiência ou reabilitadas aptas à contratação. No entanto, na prática, o que observamos é que muitas vezes as empresas não realizam uma busca ativa dessas pessoas. 

Com efeito, não basta que a empresa apenas ofereça vagas para pessoas com deficiência ou reabilitadas e aguarde que se adequem ao perfil exigido. Para que cumpra sua função social e o dever de inclusão pelo trabalho, deve comprovar, de forma patente, que, de fato, adotou ações eficazes com o fito de viabilizar a efetiva inserção dos trabalhadores e trabalhadoras com deficiência às atividades empresariais.

É imprescindível assumir uma postura proativa, a qual envolve não somente divulgação de vagas, mas também contatos com associações representativas e entidades que capacitam as pessoas com deficiência; participação em eventos e feiras de empregabilidade promovidas por órgãos públicos ou entes privados; adequação das vagas ofertadas e das atividades a serem realizadas às pessoas com deficiência.

Além disso, promover a oferta de salários e benefícios justos e condizentes com a qualificação da pessoa a ser contratada; eliminação de todas as barreiras existentes; dar garantia de plena acessibilidade; se necessário, flexibilização quanto à jornada de trabalho, horários de entrada e saída, ou mesmo modalidade de realização da atividade (presencial, remoto ou híbrido).

Isso sem falar na habilitação/capacitação das pessoas com deficiência, diretamente ou mediante custeio, para contratação, e, ainda, oferta de cursos de aprendizagem, treinamentos e capacitações para o exercício da função, com fornecimento de sua adaptação razoável; concessão de publicidade das medidas adotadas; dentre outras.

O que diz a lei sobre esse tipo de contratação? 

Os direitos das pessoas com deficiência são largamente previstos na legislação internacional e pátria. 

O combate à discriminação é um dos pilares da agenda do trabalho decente da Organização Internacional do Trabalho (OIT), explicitamente identificado no item 2 da Declaração Sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho; na Declaração Sobre a Justiça Social para uma Globalização Equitativa de 2008; no ODS nº 10 da Agenda 2030, relativo à redução das desigualdades.

Também na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (norma de status constitucional); na Convenção Interamericana sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência c/c art. 6 da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas sobre Direitos Humanos (norma de status constitucional) c/c art. 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos c/c art. 1.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos c/c art. 6 do Protocolo de San Salvador. 

Além das Convenções nº 100, sobre igualdade de remuneração de homens e mulheres trabalhadores por trabalho de igual valor; nº 111, sobre discriminação em matéria de emprego e ocupação; nº 159, sobre reabilitação profissional e emprego de pessoas com deficiência.

Na mesma linha a Constituição da República proíbe qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador com deficiência (art. 7º, XXXI); reserva percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas com deficiência na Administração Pública (art. 37, VIII). 

Ela autoriza a adoção de critério diferenciado para a concessão de aposentadoria aos servidores públicos e trabalhadores com deficiência (art. 40, § 4º, I e 201, § 1º); enumera, como objetivo da assistência social, a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e sua integração (art. 203, IV); e garante o atendimento educacional especializado (art. 208, III) e a acessibilidade a logradouros e edifícios de uso público (art. 244), dentre outras previsões.

Foto: AL Consultoria

A legislação infraconstitucional brasileira sobre o tema conta, ainda, com a Lei 7.853/89 (que serva sobre a integração social das pessoas com deficiência, definindo, inclusive, crimes); a Lei 9.029/95 (que combate práticas discriminatórias); a Lei 10.098/2000 (que estabelece normas gerais e critérios básicos de acessibilidade) e a Lei 13.146/2015 – Lei Brasileira da Inclusão (que prevê, expressamente, uma ampla gama de direitos às pessoas com deficiência, e, especificamente sobre o direito ao trabalho, preconiza a igualdade de oportunidades, enfatizando a aptidão universal do trabalhador com deficiência).

A inclusão das pessoas com deficiência é também matéria de ação afirmativa específica, disciplinada no artigo 93 da Lei n. 8.213/91, que determina que empresas que possuam 100 ou mais empregados(as) deverão reservar, às pessoas com deficiência e reabilitadas, um percentual que varia de 2 a 5% (a depender do porte da empresa).

A reserva de vagas é importante não apenas para fornecer meios de subsistência às pessoas com deficiência, mas também para fins de integrá-las à sociedade, considerando-se, especialmente, que o trabalho, além de ser o alicerce para garantia da estabilidade financeira, possui relevante papel de valorização pessoal como cidadão, de convivência social com os pares e de autonomia. A cota mostra-se, portanto, como instrumento imprescindível para efetivar a dignidade das pessoas com deficiência.

Quanto ao salário, existe algum tipo de orientação? Um deficiente ganha menos que um trabalhador considerado normal? Por que há discrepância?

O princípio da igualdade é adotado, na nossa Constituição e também na legislação internacional, como um norte a guiar a produção de leis, a elaboração de políticas públicas e, inclusive, as relações sociais privadas (inclusa a relação de trabalho).

É expressamente proibido tanto pela lei internacional quanto pela lei interna, que existam diferenças salariais entre trabalhadores que exercem a mesma função. 

A própria CLT estabelece: art. 5º. “A todo trabalho de igual valor corresponderá salário igual”; art. 461. “Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, no mesmo estabelecimento empresarial, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade”.  

Há, inclusive, previsão de multa se descumprida essa determinação legal, e a conduta poderá, eventualmente, caracterizar discriminação em razão da deficiência e ensejar as outras punições previstas na lei 9.029/95 (multa, indenização por danos morais, dever de reintegrar a pessoa eventualmente despedida e proibição de obter empréstimo ou financiamento junto a instituições financeiras oficiais).

Negar ou obstar emprego, trabalho ou promoção à pessoa em razão de sua deficiência é considerado, ainda, crime, com previsão de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa (Lei 7.853/89).

E mais, praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência é também previsto como crime, com pena de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa (Lei 13.146/15).

Nada obstante, não é incomum observarmos salários desiguais entre pessoas com e sem deficiência que exercem a mesma função.

O que se verifica, na prática, é que um dos maiores obstáculos à efetiva inclusão das pessoas com deficiência no mundo do trabalho é a chamada barreira atitudinal: preconceitos, estigmas e estereótipos relativos à aptidão laboral, normalmente fruto de uma visão assistencialista, que veicula a ideia de que a pessoa com deficiência é vítima ou incapaz, e que deve ser “ajudada”.

Por isso, é extremamente necessária uma mudança de cultura, de modo a efetivamente eliminar o preconceito, fortalecendo a solidariedade social, a tolerância e o respeito às diferenças.

O Reconecta é um dos instrumentos dessa mudança cultural, uma vez que proporciona um espaço totalmente dedicado ao intercâmbio técnico qualificado que incentiva a mobilização e a articulação entre os diferentes setores da sociedade em torno da questão da acessibilidade e da inclusão. 

Além da sensibilização, possibilita a difusão e estímulo à concretização dos direitos assegurados às pessoas com deficiência, mormente o direito ao trabalho, por meio do cumprimento da cota legal de contratação e da garantia de um ambiente laboral acessível e livre de discriminação, preconceito, assédio e violência.

Além disso, ao reunir profissionais, especialistas, instituições e a comunidade, o evento não apenas dissemina conhecimento sobre práticas inclusivas, mas também estimula a criação de redes de apoio, impulsiona a inovação em tecnologias acessíveis e reforça a conscientização sobre a importância de um mundo mais igualitário e acessível para todos.