O recorde da desigualdade social

Que o mundo é desigual, isso é um fato conhecido, embora a maioria das pessoas tenha perdido a capacidade de se indignar com essa realidade, principalmente em um país como o Brasil, que ocupa atualmente a 67ª posição no Índice de Progresso Social (IPS), 21 a mais do que o registrado há dez anos. Que o caminho para combater tamanha disparidade é rever privilégios de grupos que ocupam tal posição e não se dispõem a ceder, idem. O curioso é que o mundo não consiga reverter esse resultado em ambientes controlados, como são as organizações. 

A complexidade de modificar a realidade vigente há séculos na sociedade, em que minorias detêm regalias negadas a outros substratos populacionais, é passível de compreensão, embora a urgência da pauta devesse se sobrepor a quaisquer dificuldades de mudança. São muitas pessoas envolvidas, vários vieses inconscientes e transformações culturais e comportamentais necessárias, que demandam tempo. Mas não conseguir implantar melhorias em cenários menos obtusos é algo que merece ser alvo de reflexão.

O papel da liderança

Algumas pessoas podem alegar que empresas são ambientes complexos, e que a questão cultural sempre se interpõe como um obstáculo a ser vencido. Disso, não há dúvidas. Mas não tanto quanto sociedades heterogêneas, em que a multiplicidade de agentes envolvidos para realizar uma mudança é muito significativa. Nas empresas, um forte propósito das lideranças, amparadas pelos seus conselhos de administração, seria suficiente para alterar completamente as disparidades registradas. 

Não é tão complexo encarar de frente situações como as observadas hoje no Brasil, em que pretos e pardos são menos de 30% dos líderes em empresas de capital aberto, locais onde apenas 31,66% destes postos são ocupados por mulheres, segundo levantamento da Quantum Finance.  Estudo do Estadão corrobora essas estatísticas: somente 20,7% das cadeiras de conselhos e 16% das diretorias de empresas do Ibovespa têm como ocupantes líderes do sexo feminino. 

O Anuário ESG Disclosure Yearbook Brasil 2024 mostra que das 191 companhias listadas no Novo Mercado da B3, 50% não têm mulheres na diretoria e 27% no conselho de administração, e 82% delas não possuem sequer objetivos específicos para diversidade na alta administração. Mesmo que no resto do mundo a situação não seja diferente – estudo da Deloitte mostra que mulheres ocupam menos de um quarto dos assentos em conselhos e respondem por apenas 6% dos cargos de CEO no mundo, é difícil compreender tais indicadores e muito menos para involução em alguns deles, como a quantidade de empresas que mantém colaboradores em regime de trabalho análogo à escravidão, que atingiu o  maior número de inclusões desde a criação do cadastro, há 21 anos. 

Novos tempos, novas soluções

Não faltam ferramentas para combater tais problemas, embora alguns agentes se escondam por trás de desculpas como, por exemplo, o baixo índice escolar da pessoas negras. Ora, é possível atuar para corrigir esses gaps com medidas que já vêm sendo adotadas por algumas empresas, com atitudes como a revisão das exigências dos processos seletivos e aceitando desenvolver competências ausentes, assim como agir no presente para mudar a realidade futura. 

Há um arsenal de ações e políticas que podem ser implementadas para mitigar, pouco a pouco, a situação vigente.  Já há empresas que atrelam metas de diversidade na remuneração dos gestores, incentivando-os a perseguir o incremento nesse campo, tanto quanto buscam resultados financeiros, de forma a encarar de frente os vieses e removê-los, como fez a TIM, a empresa com maior inclusão feminina na alta liderança.

O que falta, na maioria das vezes, é vontade. Vontade de reconhecer que há privilégios e que eles não são positivos para as empresas. Vontade de ser implacável em identificar os processos que facilitam a permanência da situação atual e impedem a ascensão de uma nova realidade. Falta reconhecimento do papel da liderança como vetor de transformação social, no âmbito de sua atuação, e sua responsabilidade de deixar um legado para o mundo. Este esforço, ainda que pareça pequeno, pode ser o início de uma fagulha que acenda esse movimento em outras organizações. 

Felipe Mello Colunista
Colunista
Biólogo, mestre em Sustentabilidade e especialista em Gestão de Projetos, com 23 anos de experiência e dois prêmios de melhor Gestor de Projetos do ES.