“Numa monarquia, quem manda é o rei. No Estado Democrático de Direito quem manda é o direito. Tem quem ache que quem manda no Brasil é o presidente, quem manda no Estado é o governador e nos municípios, o prefeito. Mas quem manda nos entes federados é a Constituição”. A explanação do escritor, mestre em Direito e professor de Ética da Ufes Julio Pompeu, concedida durante entrevista ao programa De Olho no Poder, na rádio Jovem Pan News Vitória (90.5 MHz), tem um motivo.
Ela ocorreu no mesmo dia – nesta quinta-feira (11) – em que foi lida a “Carta aos Brasileiros e Brasileiras em Defesa do Estado Democrático de Direito”, redigida pela faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
A carta, que já foi assinada por mais de um milhão de pessoas, não cita nomes, mas é uma resposta às investidas de Bolsonaro e de seus seguidores mais radicais contra o sistema eleitoral brasileiro e a possibilidade de não se aceitar o resultado das urnas, em outubro. “Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o Estado Democrático de Direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional”, diz trecho do documento.
O ato cívico para a leitura da carta ocorreu em diversos estados, inclusive no Espírito Santo. Os signatários do documento – organizações da sociedade civil, sindicatos, políticos de oposição, professores, estudantes, artistas, intelectuais e empresários – se concentraram na escadaria do Teatro da Ufes e, aos gritos de “Fora, Bolsonaro”, leram o documento.
“Essa carta em defesa do Estado Democrático de Direito, nesse momento da história, em que a democracia, não só aqui mas em outros lugares do mundo, se vê ameaçada por diversos fatores, é importantíssima. Ter um grupo social relevante que diga o óbvio: ‘Olha, a democracia é importante. É importante para o capitalismo, é importante para produzir riqueza, é importante para garantir a liberdade das pessoas’. É importantíssimo esse movimento”, disse Pompeu.
Bolsonaro e seus seguidores, porém, tentaram passar a mensagem de indiferença com relação às movimentações. Nas redes sociais, o Presidente chamou a leitura do documento em defesa da democracia de “micareta do PT”, o documento, de “cartinha” e o comparou a papel higiênico. A reação, porém, que não conseguiu reverter a seu favor os atos de ontem, demonstra que, na verdade, Bolsonaro “sentiu”.
Embora grupos políticos tenham participado dos atos espalhados em todo o país, a carta da USP conseguiu reunir diversos segmentos e é a primeira resposta contundente aos ataques de Bolsonaro às urnas eletrônicas, à Justiça Eleitoral e às próprias eleições. Tem muito mais peso do que qualquer nota de repúdio emitida até aqui. Os próximos dias dirão se ela servirá como freio ao clima de tensão que se instalou no país às vésperas da eleição ou se servirá de pretexto para ataques ainda mais graves. Uma coisa, a carta já fez: atraiu muita gente que antes se mantinha à margem do debate político para a defesa da democracia.
Na boca do povo
Além de explicar a importância do Estado Democrático de Direito e da defesa da democracia, o professor Julio Pompeu também esclareceu termos e conceitos que não saem da boca do povo e que, com a proximidade das eleições, devem aquecer o debate político. O que é ser de direita ou de esquerda? Ser conservador está na moda? O que pregam o comunismo, o fascismo e o nazismo?
Pompeu explicou que alguns termos e conceitos ao longo do tempo ganham novos significados. E isso teria ocorrido com a definição sobre o que é ser de esquerda e de direita, principalmente na versão brasileira.
“Se você é de direita, defende um modelo liberal de mercado, defende que o estado não tem que se meter na economia para nada, tem que reduzir imposto, acabar com a burocracia, é menos estado de uma forma geral. E faz parte da pauta de direita ser conservador nos costumes. E ser conservador nos costumes significa ter uma moral religiosa, ser contrário à pauta LGBT. Já na esquerda, se defende que o Estado tenha um papel ativo na distribuição de riqueza, que se faz com programas sociais, impostos e regras para evitar a acumulação de riqueza excessiva, o capitalismo selvagem. Em termos de costumes, tem uma pauta que defende minorias por questões racial, étnica, econômica, identitária, a pauta LGBT. Basicamente, é isso que separa os dois grupos em termos de modelo econômico e desenvolvimento social”, disse Julio.
Segundo ele, chega a ser incoerente a pauta do conservadorismo ligada à direita, já que o “coração” do liberalismo, pregado pela direita, corresponde à liberdade em todas as áreas. “O liberalismo, quando nasce, não tem essa divisão. Para ser liberal, tem que ser liberal em tudo. O que adianta ser liberal na economia e colocar um monte de regra para todo o resto? Regra dentro da escola, onde a igreja deve funcionar, o que pode escrever no jornal”, exemplificou.
Pompeu avaliou que até entre o grupo “liberal-raiz” há incoerências. “Nem na área econômica os nossos liberais são tão liberais assim. Na hora da concorrência, do lucro, é um liberal-raiz. Na hora do investimento é: ‘cadê o estado que não me dá subsídio? Cadê o estado que não me ajuda a reduzir imposto? Cadê o estado que não me dá ajuda para instalar a fábrica aqui’? Aí não é mais liberal, é desenvolvimentista. Socializa o risco do negócio mas não socializa o lucro”.
Ser conservador está na moda?
Tornou-se comum, nesta eleição, candidatos afirmarem que são conservadores – ainda que nunca tenham levantado essa bandeira em pleitos anteriores. O novo posicionamento ideológico tem um alvo: herdar o voto do principal eleitorado de Bolsonaro.
Questionado se ser conservador está na moda, Pompeu disse que sim. “Está na moda. Queima o filme dizer que não é conservador. É o modelo que a nossa sociedade está dividida, por rótulos e não por ideias e projetos”, explicou, fazendo uma ressalva.
“Hoje a pauta do conservadorismo mudou, pode ter três, quatro famílias, pode ter uma vida desregrada, mas se for contrário à pauta LGBT, é um conservador. Se ele gritar ‘não’ ao aborto, mesmo sem ter ninguém gritando ‘sim’, é rotulado como conservador. O nosso conservadorismo é mais sustentado pela ideia de religião”.
Religião x Estado
Pompeu também esclareceu sobre o conceito de estado laico, principalmente após polêmicas envolvendo a primeira-dama do país, Michelle Bolsonaro. É comum ver afirmações de que o estado é laico mas não é ateu, e que o estado é laico e por isso não pode ser confessional.
“O conceito de ‘estado laico’ nasceu, em termos históricos, na Europa dividida em guerras religiosas. Os estados estavam entrando em guerra por causa de religião. Qual a melhor forma de resolver a questão? É a liberdade religiosa. E, para ter liberdade, o estado não tem que se misturar com religião. É contrário à ideia de estado laico tanto proibir alguém de ter a sua religião como também obrigar alguém a ter alguma religião. Porque o estado junto da religião é muito bom quando a religião é a sua. O problema é quando não é, e se tem democracia, isso pode acontecer, o jogo pode virar. A religião é ainda mais forte quando se separa do estado”, avaliou.
Na íntegra
Pompeu também explicou o que é o comunismo, o motivo de nenhuma nação ter alcançado o ideário de Karl Marx; a diferença entre comunismo e socialismo e o porquê, embora nunca tenha tido comunismo no Brasil, o fantasma de uma possível implantação desse modelo sempre reaparece às vésperas de eleições e de momentos-chave no País. “Nunca houve comunismo no Brasil, assim como nunca houve bicho-papão. Mas o bicho-papão é muito eficiente para colocar medo nas crianças. Na política tem duas formas de juntar gente: ou porque todo mundo quer a mesma coisa e caminha junto ou porque todo mundo quer fugir da mesma coisa. É muito comum na política criar um inimigo a ser combatido”, explicou.
Pompeu também falou características do fascismo e do nazismo; do quanto o capitalismo depende da democracia para se sustentar, o que é “capitalismo selvagem” e “anarquia capitalista”, da obrigatoriedade do voto e das regras que limitam a “liberdade”, tão pregada por alguns grupos políticos.
A entrevista na íntegra pode ser conferida aqui: